O VENTRE DAS RUAS

A criança dormia na mesma cama, minada de sonhos e medos. Na televisão, em preto e branco, vira um filme de terror na noite anterior. No ar, o galo rouco exercitava o canto entrecortado. Era junho, invernia, e a sirene da fábrica convocava os operários ao trabalho. A cidade funga nas chaminés e o menino tosse, rouco tal o galo da vizinhança, na alta madrugada. Era lusco-fusco quando o desejo vazou num copo de luzes. E os desempregados brincaram com os próprios corpos que vinham lambuzados de fome e cansaços. Era algo ao alcance da mão, disponível. Até o sol abrira o seu olho tímido, quando o vento lavava o rosto dos transeuntes. E os garis eram ágeis espanadores – aflitos – em suas tarefas de lavar o ventre das ruas. No quentinho da cama, a mãe fuma marijuana e o pai cheira um pó amarelado e se lambe. Ambos parecem ausentes de si e do entorno, olhos esbugalhados. O tempo se cumpria plácido e paciencioso no novelo dos dias, até o estrépito da sirene policial enovelar-se aos gritos de “salve-se quem puder”, que se mesclavam ao choro intermitente do deserdado. Joãozinho abrira os olhos e tentava meio sem jeito chupar uma descarnada coxa de galinha de ontem. A viatura estanca e dela apeia um oficial do Conselho Tutelar...

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2006/11.

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