A VIAGEM
Dona Felipa estava feliz. Seu filho finalmente faria a tão sonhada viagem de férias para o Brasil. Ele queria conhecer os locais onde seu pai transitara na primeira juventude e fizera a fortuna da família. Pai, mãe e filho compunham uma bela família de retornados: aquela originária dos que fugiram da Revolução dos Cravos, mas nunca perderam de vista o seu torrão natal.
Na verdade, dos três, somente Seu Joaquim viera para o Brasil. Adolescente ainda, viera ganhar a vida por estas bandas, e, enquanto não acumulou seu primeiro milhão não voltou para a Península Ibérica. Adiara projeto de casamento, sonho de constituir família, e embrenhara-se, como muitos de seus patrícios, no negócio de panificação.
Quando voltou para Portugal, vendeu tudo o que tinha no Brasil, deixando apenas um apartamento em Copacabana como ponto de referência e usufruto de um antigo colega que fora parceiro em seu negócio. Em Lisboa, montara uma boutique feminina num grande Shopping e foi neste mister que conheceu a jovem Felipa, quinze anos mais nova que ele, com quem casara e tivera um filho.
É este rapaz, Esteves, que, prestes a terminar a Faculdade de Medicina e casar com a bela Constança, que está com a mãe no Brasil. Eles percorrem os lugares de tantas histórias ouvidas na sua infância e adolescência. Seu pai não está com eles. É apenas presença melancólica nas lembranças. Por isso mesmo aquela viagem se tornou tão necessária. Faz exatos três meses que seu pai, atravessando uma ruela milenar do Porto, morre subitamente, acometido de um ataque fulminante do coração.
Por estar prestes a ingressar no mercado de trabalho, e sabedor que a correria profissional a que estaria sujeito, consumiria todo o seu tempo, que Esteves opta em vir ao Brasil antes do casamento e do início da tão sonhada carreira.
Manhã de segunda-feira. Saem da Tijuca, bairro do Rio de Janeiro onde Seu Joaquim montara padaria e ganhara a vida. Vão conhecer agora o internacionalmente famoso calçadão de Copacabana. Mãe e filho estão felizes. São típicos turistas transitando alegria pelo calçadão, leves e serenos, contemplando os banhistas, o horizonte azul, e o mar um tanto revolto. O vento acaricia suas faces e a água de coco que bebem refresca o corpo. As pedras portuguesas do calçadão serpenteiam sob seus pés, formando a famigerada seqüência de ondas.
Esteves está com uma mochila a tiracolo. Passeia de bermuda com a mãe pelo calçadão, enquanto sorri para a vida que lhe acena esperanças. Quer voltar para o seu Portugal, levando no coração a imagem do Brasil de seu pai. Depois que deixa a mãe à beira mar e vai buscar uns espetinhos de camarão para saborearem, algo vai acontecer que mudará definitivamente o rumo dos acontecimentos.
Dona Felipa se diverte pisando na areia, molhando os pés e as sandálias nas espumantes águas do mar. Esteves comprime-se na fila dos que aguardam ser atendidos. De repente um tumulto. Correria. Gritos. Aparece um pivete. Fotografa o jovem português e seus pertences. Cobiça sua mochila. Agarra-a. Tenta soltá-la das mãos do rapaz, puxando-a com força. Esteves resiste. Segura mais firmemente.
Uma facada apenas. Certeira. No coração. É a seqüência da ação do pivete agressor. Leva-lhe a mochila e a vida. Esteves não passa agora de um corpo estendido no chão, ainda estrebuchando do sangue quente que lhe corre nas veias, mas com vontade de esvair-se.
Dona Felipa vê o tumulto e não entende nada. Depois de alguns minutos, preocupada com a demora do filho e tomada de uma curiosidade mórbida, acerca-se dos amotinados. Triste surpresa ao reconhecer o seu filho no corpo estendido sobre as ondas de pedra. Desespera-se. Joga-se sobre o corpo ensangüentado e imóvel. Não sabe o que fará da vida. Revolta-se. Mataram-lhe o futuro; roubaram-lhe a esperança.
Notícias posteriores deram conta da prisão do assassino. Um viciado. A abstinência forçada lhe roubara o controle mental. Nada disso importava para Dona Felipa. Nada lhe traria o filho de volta.
Resta para a triste senhora voltar para Portugal. Não há mais o que fazer neste lugar. No mesmo lugar onde os sonhos nascem os sonhos morrem. Esta é a verdade que nunca aprendem os corações amantes. Ainda bem!
Dona Felipa faz uma outra viagem. A viagem de volta. Não do jeito que ela queria fazer, mas do jeito que foi possível. Volta para Portugal; volta com o filho. Ela, na primeira classe. Ele, no compartimento de bagagem, dentro do caixão de cedro. Na vida há muitas viagens que não queremos fazer. Todas, entretanto, são necessárias.