É o peixe quem escolhe a rede
Entre a imensidão do céu e do mar, Benedito se aproximava lentamente com seu frágil barco. Ambos se tornavam um, vistos de longe contra o sol. A pintura da estrutura de madeira parecia datar a idade do velho. Como se a pele do homem saísse-lhe pelos pés e cobrisse toda a embarcação, ou mesmo fosse a madeira quem lhe subia as pernas. Não parecia perceber seu atraso. A idade que lhe roubara certas habilidades, também lhe concedera o respeito, respeito esse que ensinara aos outros não deixar o caminhão ir, sem a quantidade simbólica de peixes trazida pelo homem que fora para muitos o professor. "São poucos, mas são os melhores, o velho escolhe a dedo", diziam.
O barco encostou no pier, e Heitor já o esperava, homem forte, na faixa de seus trinta anos, queimado de sol e de sorriso fácil. - "Muito peixe hoje seu Benê?", perguntou já prendendo o barco à estrutura de madeira com uma corda. O velho que até então parecia ainda estar em alto mar, com olhar distante, se volta a Heitor. - "Costumo dizer que os peixes foram tirar férias, mas esqueceram por onde volta. Ou quem sabe, gostaram tanto que resolveram ficar", - "O problema tá nos peixes não" - Respondeu o rapaz retirando um caixote de dourados do barco de Benedito, e pondo os peixes no chão, completou - "É a merda, a cidade fica cheia, nego caga e mija na praia, o peixe fica com nojo e vai embora". O velho se divertiu com a teoria, sabia que a culpa não estava nos detritos dos banhistas, mas quis entender o raciocinio questionando que peixe não se importava com merda, já que cagava na água que bebia. -"é merda de peixe", respondeu o rapaz, "que é limpa. De gente não, gente come da terra, e a terra come da gente". Não teve tempo de uma réplica, quando disse isso, Heitor ja andava com o caixote de peixes nas costas em direção à terra. Também se o rapaz continuasse parado, o teor da conversa não seria diferente, uma vez que o velho pescador só conseguia pensar que talvez estivesse sim no homem a responsabilidade pela escassez de peixe e que os poucos que restaram, estavam, por sua própria culpa, destinados a virar merda.
Mais tarde, sentado a sombra de uma árvore, o velho continuou a conversa com Heitor como se nem tivesse ocorrido tal intervalo de tempo, talvez ainda estivesse pensando naquela bobagem enquanto tomava o café, durante o programa de televisão, no momento em que a menina limpava o peixe, no horario do almoço, na cesta e quando foi ao banheiro.
"Verdade que quando o menino saía para o mar com a gente, a situação era outra." disse acendendo um cigarro. Heitor não vira que os olhos do velho pareciam mais tristes, estava distraido vendo as crianças brincarem e disse qualquer coisa sobre não ter tanta merda naqueles tempos. "Eu tenho pra mim que era o canto do menino. O barco ia mar a dentro, naquela imensidão, e só se ouvia o ronco do motor e a melodia daquela voz de passarinho. Os peixes vinham tudo atrás. No dia que o menino acordava triste e não queria cantar, não tinha jeito, era recolher a rede e voltar pra casa, ficar seria despesa. Como sinto saudade daqueles dias." Heitor já lhe dedicava a atenção que é devida aos que retornam ao passado e lhe ilustram como se lá estivessem, mas percebeu o que o leitor já sabia, os olhos do velho pareciam estar chorando. "Saudade do que foi é comum sentir. Mas o velho não devia ficar triste não. O menino agora ta bem. Se livrar de uma vida dessa, futuro cheio de incerteza. o senhor deveria estar bem feliz por causa disso. Isso lá é vida. Viver fedendo a peixe, trabalhando dia e noite com risco de ser engolido por esse marzão de Deus. Em troca de que? Nego ta com a casa lá quase caindo, não tem dinheiro nem pra trocar as telhas. É vagabundo? Nada, trabalha mais que muito engomadinho ai, só que escolheu a vida errada." Naquele instante o velho se sentiu mais sábio que o jovem. Talvez ele entendesse de merda, mas não compreendera nada da vida. Ela era rara de mais pra se permitir ser escolhida.