Aquarela
O barulho inquietante do despertador o acordava novamente, mas isso não importava agora. Ele não podia se atrasar. Embora se sentisse exausto, não poderia atender à fadiga. Não agora que fora promovido.
Ensaiou um café da manhã rápido e já se preparava para sair de casa quando, ao olhar para o vaso de flores na varanda, percebeu algo estranho que, inquietantemente, não conseguiu dizer o que era.
Na trajetória para o trabalho, refletiu sobre sua vida e sobre o quanto andava ocupado com seu emprego, a ponto de não mais ter tempo de prestar atenção ao mundo que o cerca. Há quanto tempo não parava para ver o pôr-do-sol, que tanto o atraia?
O trânsito que tinha que enfrentar até o prédio da empresa era torturante e, hoje, estava particularmente pior. O barulho das buzinas quase o ensurdecia e ele já se conformara com o fato de que chegaria atrasado. Não queria nem imaginar a reação do patrão ao vê-lo se atrasar em seu primeiro dia depois da promoção.
A imagem que se formava em sua cabeça era esta: Seu Jorge o aguardava em sua sala, esperando sua chegada. A caneca com seu café expresso encontrava-se sobre a mesa, fumegando. A fumaça desviava seu caminho pouco abaixo das narinas do chefe, que a repelia em bufadas de fúria. Seu rosto, vermelho e inchado como um pimentão, contorcia-se formando as expressões de raiva mais indescritivelmente bizarras já vistas por ele. Em resumo: estava perdido.
Ao chegar lá, a cena fazia-se quase idêntica à imaginada por ele, exceto por um pequeno detalhe que, para sua maior angústia, mais uma vez não soube identificar. Certamente havia algo de diferente na expressão do chefe, mas, por mais que olhasse, esse algo não se deixava revelar.
Ele já nem se importava com os berros do patrão, tamanha a sua inquietude. Para ser sincero, não conseguia mais nem entender as palavras por ele proferidas, limitando-se a balançar a cabeça afirmativamente.
Ao final do expediente, percebeu que sua angústia apenas aumentara e, olhando à sua volta, notou que a sensação de que algo fora da normalidade reinava, não apenas nas tulipas de sua casa ou na expressão de Seu Jorge, mas em todas as coisas.
Experimentar a enlouquecedora certeza de que algo lhe passava despercebido o dia inteiro abalava seriamente seus nervos. Não conseguia se concentrar em nada e, por duas vezes, quase bateu o carro em seu caminho de volta para casa. Pura desatenção, não notou que o semáforo acendia a luz vermelha. Não suportando mais e já se considerando louco, resolveu ligar para seu psicólogo, com quem agendou uma consulta para o dia seguinte.
Estava exausto quando, já em sua casa, olhou uma última vez para o vaso de tulipas sobre o parapeito da varanda e adormeceu, fazendo a imagem cinzenta da flor misturar-se à imensidão monocromática e, por fim, desaparecer. Amanhã voltaria a observar as cores.