Consumida

-Que Cheiro é esse? Tânia desperta de seu sono pesado, acordando assim em seu pior pesadelo, muito pior que o dia em que perdeu os movimentos das pernas e do lado esquerdo do corpo, e por ironia do destino ela fazia parte da população dos canhotos.

Tamanha era a cortina de fumaça que adentrara como uma enchente, fazendo-se assim a porta se camuflar com o espesso invasor, fazendo a mente encontrar um velho e conhecido jargão,onde há fumaça....há fogo queimando seu pequeno apartamento adaptado a sua nova condição.

e como ela chegou a isso? Andando. Andando ela foi atropelada por um carro, Tânia com medo de chegar atrasada no banco em que trabalhava, estacionou em uma rua paralela á seu destino, afinal ali ela não pagava estacionamento, e atravessou a rua próxima à esquina, um automóvel prateado com o mesmo pensamento da próxima paralítica virou abruptamente. E ela sempre soube que a culpa era dela! A lição básica de primário acabou se perdendo no cotidiano estressante de uma caixa de banco, a clássica lição: olhe para os dois lados antes de atravessar.

Agora a mulher deitada na cama se arrepende de ter comprado carpetes felpudos para seu dormitório, o mesmo carpete macio que ela ficava deitada por horas sonhando com um milagre para sair daquela maldita cadeira sobre rodas, e pensava quando faria amor naquele mesmo mar felpudo, Tânia não era uma mulher de parar o trânsito mas era uma pessoa inteligente e muito simpática, possuía um carisma que conquistava todos ao seu redor, depois do acidente esse carisma se transformou em auto piedade.

O mesmo carpete que parcelou para conseguir, agora incitava o fogo a entrar, e não seria em suaves prestações, ela estava despertando ainda e cada segundo estava mais assustada, e as chamas estavam próximas de sua cama, sim rapidamente.

Há três longos e infinitos meses, a acidentada saia do hospital, sua mãe a estava acompanhando, e permaneceu ao seu lado durante um mês, até que a jovem cadeirante “expulsou” carinhosamente a própria mãe de sua casa, alem de estar naquela situação nova e assustadora, não agüentava aquele olhar materno escrito “coitadinha de minha filhinha”, e como sempre foi uma mulher independente prefiriu enfrentar tudo sozinha!

Os mesmos segundos que transformou sua vida em cadeirante, com a mesma velocidade fazia o agente destruidor de aproximar, com a pouca agilidade que restara tentou alcançar sua cadeira de rodas, e com o ainda inábil e fraco braço direito a puxa, e consegue (mais por susto) puxar seu transporte. O ar esta pesado e o calor insuportável, ela desejou que todo seu suor apagasse aquele pequeno incêndio, depois de conseguir se arrastar até sua última esperança, ela não sabe o que fazer, a única porta do seu quarto sumiu em tamanha barreira de fumaça e fogo, e como faz pouco tempo e adaptar um apartamento fica muito caro, as duas janelas de seu quarto são alta demais.

O calor começa a causar desespero, e começa a tossir quase sem conseguir respirar, e ela esta tomada pelo desespero, não quer morrer queimada! Porque deus deixaria tamanha desgraça acontecer de novo? Ela só queria viver bem, e se possível andar só isso. Enquanto as chamas invadiram a cama que estava, queria se jogar pela janela, melhor morrer de uma vez que ser degustada por aquele “ser” que degusta a quase tudo. Mas tudo o que consegue é chorar de decepção, de nem ser capaz de se salvar da dor, fazendo um ato tão simples que é cair, em queda livre de encontro ao mais atraente solo.

Tânia grita sentindo dores de queimaduras de terceiro grau em suas pernas imóveis, ela não conseguia mexer ou sentir as mesmas, porém o cheiro de sua própria carne queimando a fez imaginar toda a dor, a adrenalina esta a mil e ela começa a se movimentar com cadeira tentando fugir com dificuldade, porém o fogo é onipresente, numa virada brusca ela tomba de rosto naquele antigo mar felpudo, agora era chamas e um material que grudou em todo seu corpo, os cabelos queimando quase que instantaneamente, bolhas e erupções, e o corpo estranho revestindo alguns de seus músculos expostos, Tânia grita, chora,implora e a única e última frase que sai de sua boca em carne viva:

-cadê os bombeiros!

Tânia respira e acorda gritando, a dor da limpeza de sua pele morta, a anestesia geral perdeu o efeito, tamanha a dor, aquele material revestia boa parte de seu corpo como um horrível e disforme couro, e para tirar os vestígios usava-se um escovão de aço, a “violência” da limpeza necessária para que a paciente não morresse de infecção generalizada, morfina corria em suas veias, e ela implorava a morte tamanho caos em todo seu corpo. Ela sobreviveu.

Nem os bombeiros acreditavam, eles entraram sem esperanças de encontrarem sobreviventes, e viram um ser em quase estado de necrose, ninguém sabe como,mas o soldado do fogo Isaías sabia que aquilo ainda estava vivo! E rapidamente fizeram o resgate com sucesso, os bombeiros foram ágeis, infelizmente ela teve o azar de morar no nono andar e o fogo ter se alastrado com uma velocidade espantosa!

Depois de meses na ala especial para queimaduras, e meses sem se olhar no espelho, Tânia assim que teve alta, teria que continuar com o processo de pomadas e ataduras, essa continuação era trabalhosa e dolorida demais, antes de sair, por azar vê sua face monstruosa consumida pelo fogo, ela grita:

-Não sou mais humana!!!!

E a maior parte encontrada de Tânia é uma das rodas da cadeira despedaçada na linha do metrô.