Cenas da Juventude
Km 110. De acordo com seus cálculos, faltavam algumas dezenas de quilômetros até chegarem em casa. Ter se movido do interior até a praia não havia lhe rendido uma viagem propriamente agradável. Quando tomaram a estrada para o litoral, ainda antes do sol nascer, começou a sentir uma angústia estranha e persistente, como aquela dorzinha enjoativa (que nem chegava a doer direito, mas causava mal-estar) de joelhos depois de andar muito num dia quente. À medida que a paisagem ia se revelando com o nascer do sol, aquela sensação de falta, de incompletude, aumentava lentamente. Parecia um rato astuto roendo o queijo pelas beiradas. Quase trezentos quilômetros depois, chegaram à praia. Eram quase oito horas da manhã.
O dia teria sido proveito à beça não fosse aquela coisa ruim que cutucava sua alma. Ficou amuada, reclusa, mandando mensagens de celular para seus amigos de minuto em minuto. Mal tocou no escabeche de badejo. Não pediu suco nem de cajá, nem de graviola, seus prediletos.
- Está tudo bem, filhinha? – Ouviu a mãe perguntando, preocupada. A garota assentiu vagamente.
- Tudo, mamãe.
- Não parece. Está tão quietinha...
- Estou? Nem reparei – disse, dispersa.
A mãe olhou para o pai, que parecia ocupado demais fitando o mar. Na verdade, aproveitando a segurança de seus largos óculos de sol, babava nas bundinhas redondinhas e peitinhos empinados que desfilavam pela praia, desejoso como aquele coiote sem sorte dos desenhos da Warner. A mãe suspirou. Pelo menos seu primogênito parecia estar se divertindo, a cabeça aparecendo e sumindo nas ondas verde-azuladas.
De tarde, após o almoço que não aproveitara, aquela angústia transformou-se num desespero ansioso. Os créditos do chip pré-pago de seu celular acabaram após tantas mensagens. A única coisa que lhe dava algum alento naquele areal quente com cheiro de peixe e bronzeador acabava de lhe faltar. A perna direita começou a balançar involuntária e incontrolavelmente. A mãe, notando, cutucou o pai, que tomava um gole de cerveja. Vendo-se notada, a menina adiantou-se.
- Pai, me dá quinze?
- Quinze o quê? – Fez-se de sonso. O filho riu de lado.
- Reais, ué.
- Pra quê?
- Meus créditos acabaram.
- Depois, Aninha – interveio a mãe. – Estamos na praia, meu bem. Deixa isso de lado e vá dar um mergulho.
A garota franziu o cenho e chegou a entreabrir os lábios para retrucar, talvez protestar, mas desistiu antes disso. Se fosse seu pai a dar a negativa, até teria insistido. Ele sempre cedia. Sua mãe, ao contrário, era irredutível. Fez um muxoxo e levantou-se. Abandonando a blusinha preta, o shortinho jeans e os piercings, correu pela areia escaldante até mergulhar no mar.
Nem mesmo as ondas gostosas da maré vespertina levaram aquela sensação horrível, que agigantava-se a ponto de fazer algo dentro de si doer. O coração palpitava, o corpo gelava por dentro. Sentia vontade de gritar – e o fez algumas vezes, mas sob a água, protegida na intimidade daquele azul esverdeado e espumante. Tentou expurgar com seus berros aquáticos o veneno desconhecido que estava corroendo-a. Os olhos ardiam, não do sal do mar, mas das lágrimas que continha com dificuldade, negando-as a liberdade do choro. Saiu da água minutos depois, tomou uma ducha ao lado do quiosque junto do qual haviam se acomodado e, voltando para a mesa, vestiu-se depois de se enxugar. Lembrou de besuntar os cabelos e a pele com cremes hidratantes. Estava ainda mais sorumbática, o semblante dominado por uma mortalha invisível, porém notável. A mãe suspirou e engoliu um camarão frito, graúdo, que mastigava. Teria de conversar com Colmar, o esposo, sobre a filha. Ele estava a conversar com o filho dentro da água. Pelo menos o mais velho não dava tanto trabalho.
Pegaram a estrada de volta para o interior pouco antes das cinco e meia da tarde, quando o céu já começava a escurecer. O trânsito fluía bem, apesar do choque entre um ônibus e um táxi dois quilômetros depois da saída da cidade, no km 8 da rodovia. A garota isolou-se no aparelho MP4. O rapaz conversava com os pais sobre coisas amenas, dando atenção especial às disciplinas que pretendia cursar no próximo semestre da faculdade.
KM 174. Cinco minutinhos. Já via a cidade ao longe. Só mais cinco minutinhos...!
- Cadê a chave de casa, mãe? – Perguntou a menina, sem esconder a ansiedade. Chegava a sentir algo tremendo por dentro, como se seu corpo ameaçasse se romper em mil pedaços a qualquer instante. A mulher, no banco da frente, mostrou o pequeno molho de chaves. Só teve tempo de sentir a argolinha escapando dos dedos antes de o carro parar na frente de casa. Assustou-se com a rapidez da garota em saltar do veículo e deixar atrás de si a porta de casa aberta após ter entrado. Quando pequenina, enjoava com viagens longas. Será que isso ainda acontecia?
A garota viu de relance o interior da casa como um conjunto de borrões em seu trajeto atabalhoado ao próprio quarto. Sentou-se diante do computador, que deixou ligado antes de sair de casa, após irromper pela porta. Acessou o Orkut e abriu o MSN. Ao longe, a voz de seus pais era um barulho distante e evitável. As sensações ruins sumiram em segundos. Suspirou, aliviada e feliz.
Seu mundo estava completo outra vez.