Lar é onde está o seu coração
Acho que não havia reparado quando o vizinho colocou aquele som que eu odiei durante tantos anos, alto, estourando a caixa de som no último volume do apartamento acima do nosso. Aquele era o momento em que minha cabeça esvaziou e tudo que eu escutava dentro era uma voz dentro de mim gritando: “É hora de partir, deixe-os para trás junto as boas lembranças que você guardou em cada canto desse lugar conhecido que você quis chamar de lar.”
Definitivamente, não era assim que meus sonhos pré-adolescentes me mostravam como seria abandonar a moradia confortável dos meus pais. Com os olhos encharcados, dei meus últimos passos até a porta, encarei bem fundo os olhos da minha mãe, que de um lado, tombando de emoção, segurava minha bolsa de mão e de outro, um porta retrato com sua foto favorita de quando eu ainda era um nanico com idéias metidas à besta.
Foi quase no momento em que subia para o ônibus para bem longe da minha pequena cidade pacata, onde cresci e vivenciei aquilo que costumava chamar de “meu inferno particular”, evitando um adeus ainda mais choroso ainda, os ouvi gritar num misto de felicidade e preocupação:
- Nós queremos que você tenha tudo que sempre quis, meu filho. Seja feliz. – berrou ela, me deixando com a cabeça cheia de interrogações. Queriam que eu fosse feliz. Mas como não é estranha a vida? São pequenos momentos que provam como somo importantes para quem tanto gostamos de nos ignorar, encarei a verdade crua.
De volta à realidade, com o pé na estrada, me deixei levar nessa fantasia do que eu seria daqui uns anos. Derrotado, vencido pelas dificuldades que me cercariam era uma coisa que não podia me acontecer. Eu tinha dezoito, olha só! Era crescido e dono do meu nariz, como gostava de dizer. De cabeça raspada, roupas na bagagem, muitos livros e minhas idéias de mudar o mundo, mudar a mim mesmo e mudar quem quisesse me mudar relaxei feliz na minha puberdade acabada, da barba mal feita, roupas chamativas, música barulhenta e namoradas descontentes.
Tudo à minha volta era motivo de risos. A capital do estado me esperava de braços abertos, como Cristo. Olhei a ponte com um sorriso nos lábios, observando o sol radiante adormecer na Baía, enquanto uma senhora no ônibus me encarava preocupada. Não liguei. Eu ia encontrar meu lugar no mundo, fazer a minha vida, morar onde o que estaria em vigor seriam as minhas leis.
A lei da toalha molhada foi a primeira a valer. Apesar de a mobília ser pouca, dando charme do vazio habitual e o cheiro de tinta recentemente seca, meu lar brilhava esplendoroso para mim, enquanto eu passei a distribuir meus “presentes”, como as cuecas, tênis e malas por ele.
Depois de um tempo, me acostumando com a rotina da faculdade, dos trotes, os professores, as garotas que dormiam comigo, tudo que me cercava foi me trazendo aos poucos o resto do que eu fui. Não era possível que alguém como eu poderia me perder tanto dentro de mim e me tornar algo tão distante dos dias sufocantes e perdidos em minhas idéias revolucionárias. Um dia eu estaria lá de volta, o naquele esburacado caminho, como meu coração havia se tornado quando saí de lá.
E nisso, num entardecer solitário, me peguei pensando se eu havia encontrado tudo que eu queria naquelas quatro paredes brancas vazias de cores e resplandecentes de solidão, falta de algo único como o sentimento de se sentir amado por alguém que daria tudo por você sem pedir em troca um sorriso, uma despedida chorosa, um pingo das suas lágrimas, porque sabia que isso te faria sofrer e a melhor maneira para se aprender qualquer coisa para essas pessoas tão insignificantes para você é deixar que a estrada tortuosa e esburacada da vida o faça cair mais uma vez, quebrar todos os ossos do rosto, e com ele encharcado de sangue e redenção, aprender que os que o amam também merecem ouvir um “eu te amo também.”