Novamente Dói
NOVAMENTE DÓI
Limpei as orelhas molhadas do banho. Mãos baixas. Pescoço baixo. O cabelo caia sob meu rosto. Não havia vontade alguma de olhar para o espelho e encarar aqueles olhos machucados, feridos, sangrando um líquido transparente. Meu coração batia descompassado, minha pele doía. Mãos baixas. Aquele, deitado no sofá da sala era corpo apenas, aqui em frente ao espelho, uma alma, velha, buscando uma vida não aqui nem ali, mas em qualquer lugar que me fizesse esquecer.
O amor não deve ser assim, não deve haver dois planos, duas metafísicas, dois olhos distantes. Ele permanece, perece, renasce, não dói apenas, ele sente. Minhas mãos baixas tomaram meu corpo com uma força tirado de um subterrâneo até então desconhecido por mim. Ergui me sem perceber. Encarei meus próprios olhos no espelho. Por cinco infinitos minutos, as pálpebras fechavam e se abriam em menos de um segundo, e aliviada fugia de mim mesma. Coragem faltava quando olhava os olhos vermelhos gritando para que eu saísse daquele banheiro. Quem mais permaneceria ali, com força, coragem, incansável senão eu mesma, para mim mesma? Estava sozinha, não mais iludida como todos os outros, sozinhos acompanhados. Corpo, alma, tudo, só, sem ninguém. Havia apenas eu com medo de mim mesma. Mãos baixas que se ergueram de uma vez, enxugaram os olhos inchados. Entre um piscar e outro eu estava de volta a mim, ainda fugida, ainda tentado me encontrar, mas estava de volta a mim. Esta dor que nasce no fundo dos órgãos e os aperta, e os chuta com força para fora, mesmo de mãos erguidas meus olhos longe agora do próprio reflexo acompanhava o chão cheio de migalhas de uma vida cotidiana, que se enxuga com a mesma toalha durante a semana inteira, que tem duas xícaras no guarda louça, e férias no final do ano. Esforçava me mas, não encontrava motivos para voltar a sala, o corredor ficou longo, minha vida complexa de mais pra ser explicada, e por conseguinte, dividida. Aquilo que dói dentro de mim, segurava me contra o que me havia de bom, encurralava me, enlouquecia me. Quem estava atrás daqueles olhos inchados? Quais tantas eram suas felicidades? Desejos? Não há como deitar e fazer adormecer um corpo que não lhe pertence, que não reconhece. O coração bate mais forte quando a intuição acerta. Certa, eu parada no corredor deixei um suspiro magoado sair de mim. Aliviada ilusoriamente dei mais alguns passos, passei direto pelo corpo que adormecia desentendido no sofá. Podia sufocá-lo pelo descaso com o que eu sentia, pelos meus olhos inchados que os dele se livraram. Abri a porta, fechei a porta, tirei os sapatos, pisei nas folhas secas caídas no quintal, suspirei mais uma vez, aliviada ilusoriamente por pensar automaticamente que estava viva e que aquelas folhas eram uma dádiva. Não, não eram. Eram apenas folhas secas no meu quintal sujo, na minha casa cansada, no meu mundo solto neste universo incrédulo e escuro, misterioso e egoísta. Quando me tomei odiando todo o escuro e espaço vazio deste mundo, percebi que meu medo, meu desespero não cabiam até onde meu pensamento conseguia chegar nesta escuridão. De pés descalços sentia apenas o frio, que me incomodava. Em mim não cabia um ponta de glória, de perdão, de crença. Em mim não havia espaço para bênçãos e curas. O universo negro disputava com meu mundo seu vazio, seu egoísmo, seu mistério sua possessão pelo nada.
Poderia morrer, poderia descer as escadas e andar eternamente. Novamente as mãos se fizeram baixas, grudadas nas grades que me guardavam de um mundo sombrio, que me guardavam em poucos metros quadrados. O sol brilhava, mas estava frio, meu rosto adormecido não sentia mais as lagrimas escorrerem. Onde este desespero vai levar meu corpo? Onde vai encontrar minha alma? Por onde ela deve estar vagando agora? Longe de mim. O que resta grudada na grade é um corpo vazio, sem força, desesperado. Nem há tanto que lembrar eu estava ausente. Incomodada com todos os outros corpos ocupando o espaço deste mundo, sem vontade de me erguer, sem animo, sem vida, sem valores. Poderia morrer logo, dependência de remédios, dependência de silêncios, dependência de falta de alegria. Não deixaria nada, nem fãs, nem ídolos, nem cheiros, nem histórias, nem xícaras sujas. Apenas deixaria de existir, descobriria logo o que há do outro lado, e caso realmente aconteça, nasceria de novo e quem sabe com alguma sorte a mais. O amor não deveria doer. Se dói então amo, mas o tenho como castigo.