O Cão

O Cão

Estava fora de casa, havia empecilhos lá dentro. Estava conversando distraída.

Os vizinhos do lado, um pai e seu filho já crescido. Um senhor e um homem, velho jovem, com, certamente, algum problema sensível. Um senhor com problemas de audição. Pessoas curiosas, mas de extremo respeito, ao próximo e ao mundo todo. Recicladores de lixo. Limpadores do ar. Almas sozinhas. Uma alma que cuida da outra, um apresso maior que o outro. Dois homens, duas almas entrelaçadas, tímidas do amor existente ao outro, mas que fazem da própria existência a razão da outra. Amor paternal inconfundível. Respeito e admiração incontestável.

O aviso de que as casas já poderiam voltar a serem ocupadas foi dado. Alguns, como eu, ainda permaneciam pra fora. A conversa estava agradável, os sexos opostos se conhecendo, a atração inexistente se fazendo presente. Jovens!

Os risos começaram, olhei para o lado e também senti uma cócega dentro de mim. Aquele senhor, que está isolado de uma parte do mundo, por não poder ouvi-la, puxava carinhosamente seu cãozinho de volta para dentro da casa. Coleira estica, recuo. O pobre cãozinho não queria voltar. Foi puxado, sem que seu dono percebesse que o puxava. A coleira quase saia, mas não poderia, pois não passava por sua cabecinha. As quatro patas escorregavam no asfalto. A cabeça se erguia em direção ao céu. Ele realmente não queria voltar para dentro da casa. Cãozinho preto e marrom, amado, com toda certeza. Uma cena, incrivelmente cômica, até que meu peito pulou. O filho - o homem com algum problema sensível - de responsabilidade, mas de rosto problemático, podia ter problemas, mas podia ouvir. Olhou para os sorrisos, sentiu os risos. Vinha vindo atrás do pai, e do cãozinho. Olhou para o cão que lhe pertencia, e olhando para o pai sentiu a solidão daquele que não pode ouvir e, portanto, perceber, que poderia haver sofrimento no pobre cãozinho, e que com certeza havia comicidade na submissão do próprio. O filho sentiu o isolamento das três criaturas em frente ao mundo, a cidade, ao bairro, a rua em que viviam. Sentiu que deveria fazê-lo parar, deveria soltar o cão, mas não poderia era seu pai, era seu respeito, era seu amor e compaixão a criatura que não o abandonara nunca, mesmo assim, sendo os dois já sozinhos. Duas pessoas dependentes uma da outra, dois sexos iguais, duas proteções mútuas sem saber. Um deles irá partir mais cedo, o outro ficará sozinho, e seguirá, certamente, na mesma casa, nas mesmas funções, na mesma solidão que se apaga frente ao carrinho de pipoca e as sucatas, que talvez eles nunca saibam, mas que é a futura salvação do mundo.

O cãozinho voltou para casa acompanhado por seus donos. Algo ainda deve ter passado pela mente do filho, mas não se sabe, pois ele entra, fica e permanece na vida cheia e satisfeita que levam.

Passo algumas vezes em frente ao portão de grades que preserva a casa de três criaturas maravilhosas. Certas vezes eu paro para admirar a cena; debaixo da mangueira dormem, em cima do papelão, pai, filho e o cãozinho que percebe meu olhar admirando e late compulsivamente querendo dizer: “ Vá embora, não perturbe nossa segurança, nossa vida maravilhosa, perfeita”. E não os acorda com isso, pois o pai não ouve, e o filho descansa de verdade!

010409

BCA(admirada)

BCA
Enviado por BCA em 17/07/2009
Código do texto: T1704662
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