O menino
-- Ô menino!
-- O que é?
-- Vem cá!
-- Quero não.
-- Vem logo senão tu apanha, mizera!
O garoto foi ao encontro da mulher, revoltado, resmungando palavras ininteligíveis.
-- O que que tu quer?
-- Vai buscar o meu remédio na farmácia.
-- Vai tu.
-- Eu tô doente porra, não posso ir.
-- É mentira tua.
-- É o que menino? Me respeita, eu não minto!
-- E por que tu fica curada quando teu macho chega?
A mulher enrubesceu ao ouvir estar palavras e não se conteve. Levantou-se da rede preguiçosa, apanhou o chinelo num súbito ataque de impaciência e irritada levantou as legítimas.
-- Me dá logo o dinheiro.
Tal reação do garoto fez a mulher sentir a total perda de autoridade diante do menino. Por mais que ela não fosse mãe dele, o criara desde pequeno, ele lhe devia respeito.
-- Tenho não, paga tu mesmo.
-- Oxi, eu tenho nada.
-- E eu quero saber? Arranja.
-- Tu vai querer que eu roube é?
-- Eu quero é que tu compre remédio pra tua mãe doente.
-- Tu num é minha mãe.
-- Mas tu me deve respeito mesmo assim! Se eu morrer tu num vai ter quem te cuidar.
-- Ia ser é bom.
-- Bate na boca menino! E vai-te logo embora comprar esse remédio.
'Ave diacho!' o moleque saiu na rua sem saber o que fazer 'O que essa disgraçada quer que eu faça? Eu num quero roubar não...'
-- Ei moleque! -- era o "macho" da "mãe" dele. O menino não ia com a cara dele, mas o que ele tinha a ver com o mau gosto da disgramada -- Lita tá em casa?
-- Tá. Mas ela tá doente.
O rapaz soltou um sorriso malicioso.
-- Eu faço ela sarar rapidinho.
-- Então aproveita e compra o remédio dela que eu não tenho dinheiro.
-- Ela mandou tu comprar remédio foi?
-- Foi.
-- Pode deixar comigo. Vai gastar o dinheiro do remédio com chocolate, vai. -- e retirou-se em direção à casa da amante.
-- Ah tá, o dinheiro que ela me deu. Bocó.
Andou pelas ruas do bairro para não ter que aturar as súplicas e os barulhos animalescos do casal enamorado. Essa era a hora em que a mulher mais parecia doente. Asmática e ofegante, suplicando a piedade do companheiro rijo e obstinado.
-- Será que ela ainda vai tá rabugenta quando eu voltar? Afe, não tô a fim de aturar bronca daquela rapariga flácida e decadente... Acho que vou dormir fora hoje.
O menino sentou-se no banco da primeira praça que encontrou e ficou inerte até seus músculos amolecerem e seus olhos acompanharem o ritmo dos outros. Desfaleceu ali mesmo.
No dia seguinte o guarda foi reclamar com o suposto delinqüente; afinal, banco de praça não era cama. Cutucou o menino mas não obteve resposta. Sacudiu-o mas o resultado foi o mesmo. Colocou a mão no pescoço do garoto e pôde perceber nitidamente a frieza no corpo dele. Quis comprovar o inevitável: pegou o pulso do garoto e teve a confirmação que temia. Levou o corpo do desconhecido ao necrotério e obteve o laudo. O garoto estava doente.