Fênix
Chegou tarde naquela noite. Abriu a porta de seu apartamento abatida. Jogou as chaves sobre o móvel próximo, depositou a bolsa na cadeira e a blusa em outra poltrona. Ia se desfazendo dos penduricalhos até que chegasse ao sofá e se lançasse, como se ela própria fosse um berloque. Estava cansada. Mais do que isso.
Virou o rosto à procura do controle remoto do aparelho de som que se encontrava no mesmo lugar aonde o deixara na noite anterior. Quem mais poderia ter mexido em suas coisas? Havia uma semana que morava sozinha. Esticou o braço até alcançá-lo e num movimento circular apontou o controle em direção ao aparelho. As luzes azuis, vermelhas e alaranjadas brotaram na penumbra de sua sala. Eram as únicas luzes além do facho que invadia a sala graças ao poste próximo as suas janelas. Mais alguns segundos e o ambiente foi inundado pela melodia que ouvia todas as noites desde que o mandara embora. Amava Tchaikovsky e particularmente seu ‘Concerto para Violino em D maior Op. 35’. Emocionava-se sempre que o ouvia, mas agora essa composição parecia ser parte de seu corpo, extensão dela própria e de seus sentidos. Bela e melancólica.
A suave melodia preencheu o ar pouco a pouco. Sentiu uma pontada de dor a cada nota que reverberava em seus ouvidos. Comparava essa música ao sorriso de alguém que perdera a sanidade. Um belo sorriso triste envolvido numa áurea de mistério. Ela mesma sequer sorria, mesmo o riso triste de um louco que não sabe porque sorri.
O telefone tocou.
Num sobressalto sentiu os músculos contraírem-se num espasmo de agonia. Esperou. Ao quinto toque a secretária eletrônica, que ainda registrava a voz dele em sua memória, atendeu a ligação. “No momento não estamos em casa. Deixe seu recado após o sinal”. Segundos se passaram até que a voz do outro lado, idêntica a gravada na máquina, mas com um tom ressentido, disse num só sopro: “Te amo”. Desligou.
Ela respirou profundamente e um mal estar se sobrepôs ao susto da campainha. “Que fiz... Por que fiz isso?”. Era a dúvida que a deixava inquieta no momento, mas foi outra a dúvida que fez com que chegasse até este ponto. Lembrou-se dos últimos meses em que dividia sua vida com outra pessoa e como reagiu ao confrontar-se com um dilema. “Eu o amo?”. A resposta que obtivera era positiva, mas vazia. Amava-o e não duvidava disso, mas como o amava? O nó em sua garganta apertou-se. “Eu o amo, mas ele não me fez feliz. Não me faz feliz”. Ao fundo, o som de um violino solitário vagava entre as paredes. Sentia-se solitária e angustiada, como o som que parecia aprisionado em sua sala à procura de uma saída. Perdida em si mesma e vítima de suas decisões permitiu sua mente vaguear.
...
Lembrou da ligação de um antigo amor dias antes. Permanecia a amizade entre eles, posta à prova após um relacionamento intenso e breve, como é característico neste tipo de paixão que arrebata. Percebeu-se curiosa quanto a reencontrá-lo. Como se sentiria frente aquele homem hoje? A simples idéia de revê-lo fez com que o sangue voltasse a bombear cargas de adrenalina que percorriam seu corpo. Confrontar-se com o súbito desejo que surgira entre cinzas e quase esquecido – ou sufocado – pela cotidiana vida.
Fosse por caráter ou medo, procurava evitar pensar num possível reencontro, mas quanto mais se tenta evitar um pensamento mais ele toma forma e finca raízes. “Não está certo pensar nisso agora. Isso foi há anos atrás. Por que me sinto tentada a ver uma sombra de meu passado? Fiz escolhas. Fiz ESCOLHAS”.
Certo dia, durante um de seus combates morais, uma nova idéia deu outro rumo a estes pensamentos: “Fiz escolhas antes. O que me impede de tomar novas decisões? Sou eu incapaz de escolher novos caminhos? E por que não escolher mais de UM caminho? Porque me privar do desejo por um e me abster do Amor por outro?”. Assustou-se consigo mesma. Abrira a caixa de Pandora. Ao mesmo passo em que sentiu repulsa de si e julgou-se leviana, aliviou-se. Era penoso para ela admitir que recebeu a derradeira idéia com prazer. “Eu posso escolher este caminho. O que me impede?”. Ela sabia o que a impedia. Seu voto de dedicar-se a apenas um homem. “Na alegria e na tristeza”.
Ele sempre fora pacato e paciente. Tinha certo brilhantismo a sua maneira, mas com o tempo os mesmos adjetivos que faziam dele a pessoa certa para se estar tornaram-no enfadonho e desinteressante. Sua serenidade agora tinha ares de resignação irritante e seu brilhantismo o tornara um tolo desatento ao mundo a sua volta e ela chegou à conclusão, irremediável neste ponto, de que fazia parte das marginais de sua vida, não mais que isso. Ela queria ser o centro. Essa condição ela exigia. Não poderia ser de outra forma.
Pensava no homem que havia deixado para trás com menos cautela agora. Permitia-se ir um pouco além e num desses pensamentos quis ver-se perdida em seus braços. Sentia uma fagulha da mulher que havia sido e percebia novas possibilidades. Algo além e desconhecido, mas a cada vez que pensava nessa paixão sua libido era jogada aos ares numa explosão. Pensar ao longo do tempo parecia já não aplacar a sede que só aumentava, mas o medo nos preserva e controla. Sabia que seria injusta com o homem que elegera como seu companheiro e marido. Aquele que escolhera para deitar-se todas as noites até que o tempo cumprisse sua trajetória e findasse. “O que direi daqui a alguns anos? Que vida terei levado?”.
O cerco que criara em torno de si apertava-se dia após dia. Como se quisesse respirar e não pudesse e, ainda assim, se conseguisse libertar-se dessa prisão imaginária, parecia que o inverso ocorreria. Todo o ar do mundo iria invadir-lhe num mesmo momento e ela explodiria em milhares de pedaços. Medo... De ir e de ficar.
Depois de tantas fórmulas, conversas e possibilidades friamente estudadas – contando até um prazo para que tudo voltasse aos eixos, proposto por ele – sentia-se a cada dia mais infeliz por amá-lo e desejar outro. “Temos um prazo de validade para reaquecer o amor? De que vale isso se em nada mudamos um com o outro?”. Pensava com mágoa enquanto observava aquele homem que inspirava pena e desprezo ao mesmo tempo. Queria que ele causasse os mesmos sentimentos que o outro lhe causava, apesar da distância física e temporal.
E foi no “Tempo” que ela prestou atenção.
Passou a lembrar, não apenas do homem com quem dividiu uma paixão no passado, ainda que fugaz, intensa e inesquecível. Pensou como era o mundo a sua volta naquele tempo, quando o encontrou.
Viu-se outra mulher. Cheia de energia e possibilidades. A carreira que dava início – e hoje já outra que sequer lhe servia de consolo – e os sonhos futuros que, deveriam ser agora, seu presente. Muito pouco se concretizou. Aquela de hoje era uma mulher com pequenas frustrações que, somadas, davam vulto a alguém que ela desconhecia. Essa constatação de sua dualidade a fez chorar muitas vezes depois. Pouco restou daquela que fora.
Em meio aos prantos diários, disse ao homem com quem vivia que tudo estava terminado. Ele, pego de surpresa – pois tudo parecia normal pra ele até então, ainda que a visse sempre entristecida nos últimos meses – pensou por um segundo que pudesse ser uma brincadeira, mas ela não era dada a brincadeiras. Não mais. Ele lhe perguntou seguidas vezes o que havia feito de errado enquanto ela mantinha a postura e as feições de uma estátua. Impassível era a expressão de seu rosto, destruída sentia-se por dentro. “Eu me mato” disse ele sem pensar. Ela sentiu um aperto no peito e o olhou, profunda e demoradamente. “Não. Não se mata” disse, se surpreendendo com as próprias palavras como se não fosse ela a dizer, mas apenas a assistir o fim de algo que não pertencia a sua vida. Indiferente e distante a tudo. Espectadora de si mesma.
O conduziu até a porta e, num momento depois, o chamou uma última vez, quando ele já estava no meio do corredor. “Saiba que... Amo você”. Fechou a porta e escorregou até o chão onde permaneceu por mais de três horas abraçada aos joelhos.
Ainda tinha colada às suas retinas a imagem do rosto daquele homem com quem dividiu tanto e, sentia, recebera tão pouco. O colocou pra fora, não da casa, mas de sua vida. Naquela noite julgou-se vil e cruel, não pelo ato em si, mas por sentir-se simplesmente melhor. Era a culpa que surgia por entre as frestas da porta recém aberta de um novo mundo para ela. Um mundo que a assustava, mas que a havia perseguido. Uma porta que exigia ser aberta.
Entendeu que se sentiria melhor se telefonasse ao outro homem. O de seu passado. Tinha algo a dizer a ele também.
Depois de dois toques o homem, que serviu de estopim para uma reação em cadeia na vida daquela mulher, atendeu ao telefone e mostrou-se amável ao reconhecê-la. “Antes que fale qualquer coisa...” – começou ela dizendo hesitante – “...Quero pedir que não me telefone ou procure. Nunca mais”. Repousou o telefone na mesa e permaneceu com o olhar perdido. Sem pensar em nada mais naquele momento.
...
Como se houvesse despertado de um sono profundo, endireitou-se no sofá. Tudo parecia diferente agora.
Após repassar mentalmente o que têm sido seus últimos dias e quais sentimentos haviam percorrido seu corpo, pôde ler as entrelinhas do caso proposto pelo destino. Já não pensava em um ou noutro homem. Não julgava mais nenhum deles ou a si mesma. Seguiu ouvindo o concerto, já no final de sua execução. A mesma música dizia outra coisa aos seus ouvidos. Já não era melancólica. Era um renascer e, assim como a melodia, ela era a mesma. Nunca foi outra. Hoje era apenas resultado de suas escolhas e eram SUAS as escolhas. Pôde de fato decidir e talvez tenha cometido equívocos, mas estes erros não faziam dela alguém diferente.
Sentia-se acalmar e o abismo em seu peito, o vazio em que vagava, não passava agora de uma sensação distante, como se jamais o tivesse sentido dentro de si. Como se houvesse sido um sonho.
“Fiz minhas escolhas e não contemplei a felicidade plena, mas sei e sinto que a felicidade não é constante. Quero e preciso viver de outra maneira porque EU faço as escolhas. Escolhi sofrer... Não há culpados além do espelho”.
O telefone voltou a tocar estridente.
Ela se levantou, sem sobressaltos agora, e caminhou em direção ao telefone.
O segundo toque reverberava.
Ela inspirou profundamente.
Terceiro toque e este lhe pareceu mais longo.
Ela olhou para o telefone e ele soou pela quarta vez.
Olhou agora para a porta a sua frente e sorriu.
“Faço minhas escolhas...”.