Antes da Chuva
É mágico perceber, mas em dias como este a chuva demora a cair. Deus cobre o céu azul com um manto cinza, sopra constantemente um sopro frio e faz o vento esculpir as árvores. Depois que passa, tudo volta ao normal.
Quando a notícia chega aos ouvidos, ou já se esperava, ou é uma surpresa tão grande que dói mais que a própria perda. Fecha-se os olhos e tenta-se recordar dos momentos em que foram compartilhados, das horas que passaram no mesmo lugar, dos assuntos trocados, das opiniões e até mesmo se era de caráter bom. E então, tenta-se, esforça-se para recordar a fisionomia com o já conhecido medo do esquecimento. Quando foi a ultima vez que ficamos frente a frente? Qual mesmo, a cor dos olhos? A risada? O modo como franzia a testa! Mexia nos cabelos! Usava as mãos! Difícil é recordar com clareza. Mais tarde, quando se convence que mesmo queridos, os detalhes que havia reparado eram poucos, de tão próximos não era necessário olhar de perto, perceber os mistérios de um corpo que apenas guardava a alma que se amava. Mas, agora, o que dói na verdade é não poder mais ver os gestos para poder guardar. A mente se esforça, e tudo o que passa nela são forçadas recordações, são teimosas sensações que não existem, mas que deveriam estar acontecendo. Um corpo só, que antes estava presente. Uma alma cansada que doía e hoje descansa da dor física e se conforta em saber da dor dos que a amavam. Dor que quanto mais dói revela o maior amor, a maior falta, a mais dura e sofrida recuperação.
Esperando para ver o corpo pela ultima vez, imagina-se que além, ainda há os que estavam mais pertos, os que a dor deve ser tamanha e insuportável. Há os que dependiam do corpo que se vai, há os que amavam o todo e precisavam do todo. Imagina-se que chegará a hora de soltar as desajeitadas palavras de conforto que têm a intenção de conformar o inconformável. Há lágrimas que caem de corpos sem esforço, mas em descarrego. Há os que terão de dar as roupas, os pertences, desfazer-se dos bens queridos, dormir na mesma cama, sentar no mesmo sofá, usufruir das mesmas conquistas, a estes, compreende-se o que na verdade dói. A estes se entende o que realmente fere, machuca, sangra. A presença que permanece, a memória que nunca é boa o suficiente, o medo da vigia, do esquecimento, da não gratidão, da insegurança de não ter a memória como realmente merecia. O que fica é o que não se pode ver e certas vezes nem se pode sentir, mas de tanto que se cobra, sente-se e assim, machuca-se.
Os traços realmente são de difícil acesso, o perfume é instigado pelos narizes que tinham a energia compartilhada. Aos que são frutos desta energia fica-se uma cobrança de uma eterna lembrança, de uma página que nunca poderá ser virada, de um braço que nunca poderá ser encolhido, de olhos que nunca poderão dormir, de tempos que nunca poderão passar. Além de boas lembranças alojá-se nas pobres mentes um zunido que não descansa.
Dor. Pesada. Confusa. Muitas vezes nem dói, mas deve doer, deve sangrar, deve mostrar que nesta dor mora um amor, nestas lágrimas moram saudades, neste corpo que se contorce ainda há vestígios de alguém. Os corações que ainda batem bombeiam um não-acreditar, um não-aceitar. Flores que passam despercebidas, ou que causam raiva por fazerem o lugar de alguém que antes o cobria. Raiva de um céu cinza em respeito a uma ida. Raiva de um Deus que não se esforçou o suficiente, que não estava perto, que não conhecia, que maltrata e castiga. Raiva dos que vieram assistir a dor, dos que recordam o que não se recorda. Raiva da música que matem vestígios. Raiva dos abraços desajeitados. Raiva da vida, do novo começo, da superação. Raiva. Dor. Pesada. Confusa.
O tempo vai passar, as cores irão voltar, sorrisos voltarão a surgir. A memória vai falhar ainda, e cada vez mais, os cheiros desaparecerão de vez, o contato por mais teimoso chegará ao fim. Restará a oração, os pedidos, a saudade, as desculpas e os perdões, a vida que segue...
Quem nunca morreu, que atire a primeira pedra...
BCA (esperando)