Deus também ri

Não era a primeira vez que ele se sentava naquela mesa. Também não era a primeira vez que pedia a mesma bebida, ao mesmo garçom, da mesma maneira.

- Um vi-nho tin-to por fa-vor? (As mesmas sílabas pronunciadas com as mesmas tonalidades e expressões faciais).

Cumpria sua rotina, criada e estabelecida por ele mesmo, como um ritual quase obsessivo. Achava que se não fizesse aquilo ia morrer. Para ele – e só para ele -, era Deus. E caso desobedecesse às suas próprias leis divinas, seria auto-punido.

Exatamente por se auto-declarar Deus e por fazer sempre as mesas coisas, observava os outros a todo instante e os considerava como figurantes da magnífica novela que era sua vida. Pensava que conhecia a todas as pessoas só de olhá-las. Ele era o maior analista do universo. Claro, ele era Deus!

Porém, naquele dia, ele pecou. Um pecado bobo (aos nossos olhos), mas para ele o pecado fora grave. Ao sair do bar, passou em uma banca de jornais e comprou uma revista em quadrinhos (que coisa tola para um deus fazer, não?). Ele mesmo não sabia explicar o porquê de ter feito aquilo, mas como nem tudo na vida tem explicação, ele simplesmente o fez. Sentou num banco de praça e começou a ler. Pela primeira vez em muitos anos, Deus riu. Riu como há muito não ria. Um riso quase histérico, saído de lá de dentro como que guardado há anos num baú velho esperando o momento de ser libertado. As pessoas que passavam também riam. Mas riam dele, e não com ele.

- É um louco. – diziam.

Então, Deus percebeu que riam dele. E ele, mais do que nunca, analisou aquelas pessoas. E riu mais ainda. Aquela gente era engraçada demais. Deus os viu como reles animais, cobertos de pelos e unhas e dentes e pele, odores e secreções. Todas eram iguais: exatos dois olhos, dois braços, duas pernas, duas orelhas... E vejam como andam! Como podem locomover-se estando soltos no espaço? Como se movimentam não estando ligados a nenhuma espécie de tomada? E por dentro, como eram? Uma reunião de ossos e veias e órgãos e sangue. E aquelas pessoas, normais... eram tão normais! Normais como a própria palavra sugere: N-O-R-M-A-L, nada mais, nada menos do que isso. E elas se achavam tão importantes! Uma porque usava determinada roupa, outra porque trabalhava em determinado lugar, outra porque tinha dinheiro no bolso (não é o dinheiro um papel?) O que aquele papelzinho dobrável, rasgável, amassável, queimável tinha de importante para aquelas pessoas normais? Deus poderia queimá-los. E riu daquilo. E passou o resto do dia ali, sentado, rindo sozinho... ele só se bastava. Porém, aos poucos também percebeu... ele se percebeu. Também era um simples animal coberto de pele e pelos e unhas... Também possuía órgãos e ossos e sangue... Ou seja, ele também era... normal. Ele riu mais ainda. Sua vida, assim como a dos outros era ridícula demais.

E as pessoas continuavam a passar, com a mesma cara de quem está levando a vida a sério. Mas a vida não é séria – foi a conclusão do dia daquele deus-pecador. E se a vida não é séria, de quê adianta vivê-la?

Deus levantou do banco de praça e começou a andar. Andar sem rumo, farto de seus dias rotineiros, farto de seus rituais e principalmente, farto das pessoas normais. Deus fartou-se da vida assim como a vida há tempos fartara-se dele. Nunca mais foi visto. Alguns nem acreditavam que um dia tivesse existido. Ninguém procurou por ele e nem perguntou por ele. Ninguém nem sentiu a sua falta, afinal, não era ele apenas o louco que rira sozinho em um banco de praça com uma revistinha na mão? Não era ele que durante anos comunicara-se pelo silêncio, sem nada a dizer, porém com tudo a pensar?

E assim, em silêncio, a vida normal das pessoas normais segue seu curso, com a ausência de Deus nas coisas e sem a graça e a loucura daquele riso contido.

Eis aqui a verdadeira divina comédia.

Daniel Bartholomeu
Enviado por Daniel Bartholomeu em 17/05/2006
Código do texto: T157890