MEU AMIGO, MEU INIMIGO
O senhor Armando chegou em casa reinento. Antes de abrir a porta da frente, deu uma ralhada em seu cachorro que veio lhe receber todo faceiro, mas com as patas sujas, estragando sua calça fina.
- Já prá lá, jaguara!
Sua esposa lhe aguardava no quarto lendo um livro e só de ouvir o jeito com que ele jogou as chaves em cima da mesa, ela já deduziu o que tinha acontecido.
- Perdi no pôquer. Mas eu juro que aquele filho de um carcamano do senhor Francesco tava roubando. Eu não perco daquele jeito...
Mas nem era tanto com o dinheiro que Armando se importava. Ele não suportava era a forma debochada com que o outro se vangloriava de tê-lo tirado do jogo, após rapelar todas as suas fichas e o seu dinheiro.
- E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!!
Ele não conseguia dormir lembrando daquele riso insuportável. Nunca tinha percebido o quanto Francesco podia ser irritante. Mas Armando precisava dormir. No outro dia, levantou cedo procurando esquecer do malfadado pôquer. Durante o café, sua esposa lia a metade do jornal que tinha as sociais e as fofocas dos artistas, enquanto seu Armando lia a parte da política e dos esportes.
- Olha aqui. Saiu as fotos do casamento da filha do Francesco. Eles pagaram duas páginas. E em cores.
E mostrou para o marido que se enxergou numa das fotos. Tinha saído vesgo e feio. E no jornal de sábado. Ele já se irritou cedo nesta manhã. Antes de sair de casa, deu uma ralhada com o cachorro que se aproximou para fazer festa e já levou um coice do dono.
- Já prá lá, jaguara!
E, assim, seu Armando chegou ao trabalho. Ele era dono de uma loja de roupas chiques, que ficava ao lado da padaria de seu Francesco. Geralmente, quando cruzava em frente da loja do amigo, costumava cumprimentá-lo com um aceno. Às vezes, até conversavam por um instante sobre o que tinham lido no jornal naquela manhã, durante o café. Mas não hoje. Seu Armando nem olhou para o lado, pois não queria enxergar a cara daquele descentes de italianos que vieram clandestinamente nos navios, iguais aos ratos. Logo que entrou na loja, uma cliente conversava com a sua funcionária.
- Olha, eu realmente achei bonito esse vestido, mas não vou levá-lo. Parece cheirar a fritura.
Seu Armando procurou intervir a conversa.
- Oh, não minha senhora. Sou o dono da loja e peço-lhe desculpas, mas é que existe uma padaria bem ao lado e o cheiro de frituras certamente é deles, não daqui.
Mas a mulher não quis saber, agradeceu e foi embora. Seu Armando ficou chateado com o ocorrido. Ainda mais depois de sua funcionária dizer que não era a primeira vez que aquilo acontecia.
- Toda manhã o cheiro de fritura invade a loja e temos esse problema. Isso quando não são as baratas. É cheio de baratas aqui nessa peça.
Seu Armando havia tomado uma decisão. Não ia mais deixar que o carcamano estragasse seus negócios e arruinasse com o seu humor. Assim, ele chamou seu advogado e perguntou o que poderia fazer nesse caso. Ele queria, a todo custo, que o carcamano viesse lhe pedir desculpas.
- Olha, seu Armando. Lhe aconselho o seguinte: vamos entrar logo com uma Ação de Indenização por Perdas e Danos. Afinal, o senhor está sendo prejudicado em seus negócios...
Enquanto esperava pela resposta de seu cliente, o advogado dava baforadas com a fumaça de seu charuto, instigando o cliente a não demonstrar fraqueza, pois além de ser prejudicado financeiramente, estava sendo humilhado pelo ex-amigo e parceiro de pôquer, que lhe rapelou na última partida.
- E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!!
A imagem debochada do carcamano estava fresca em sua mente. Armando autorizou o advogado a ir adiante com o processo.
- É claro que, para isso, vou precisar que o senhor adiante um dinheiro...
Armando foi até o cofre, pegou o talão de cheques e passou ao advogado a quantia solicitada. Dias depois, Armando via entrar porta adentro em sua loja o seu algoz, espumando de raiva, com o processo em mãos.
- O que significa isso??
- Desculpe, mas só falarei através de meu advogado... -respondeu, displicente.
- Ah, é assim?? Então, me aguarde.
Passou alguns dias, Armando estava terminando de tomar o seu café, recebeu uma ligação de sua funcionária avisando que havia uma ordem de despejo para ser cumprida imediatamente para a loja. O locatário era o carcamano. Armando saiu rápido de casa, irritadíssimo, esquivando-se das patas do cachorro.
- Já prá lá, jaguara!
Chegou em sua loja, pegou a ordem de despejo e entrou espumando de raiva na padaria de Francesco.
- O que significa isso, seu carcamano? Alguma vez eu atrasei o pagamento da peça que tu me aluga?
- Nunca atrasou o pagamento, mas também nunca assinou contrato. Era no fio do bigode. E estou precisando aumentar o espaço aqui da padaria. Afinal, não quero que o cheiro dos pastéis prejudique ninguém...
- É assim?
- Por favor, agora estou ocupado. Qualquer coisa, fale com meu advogado...- respondeu Francesco, que até aceitaria um pedido de desculpas, mas tinha sido aconselhado por seu advogado a não afrouxar.
Armando chegou na loja, pegou o telefone e chamou o advogado imediatamente. Em seguida, pediu para a sua mulher trazer de casa o jornal em que sua foto tinha sido publicada no casamento da filha de Francesco.
- Quero que processe ele pelo uso de minha imagem sem autorização. Saí ridicularizado. Minha honra foi maculada. E isso aqui foi página paga.
E, assim, mais um processo e mais um cheque na mão do advogado de Armando. Francesco, por sua vez, colheu depoimentos com seus colegas de pôquer e reuniu provas de que Armando lhe chamava de "carcamano" pelas costas e emitia várias outras declarações discriminatórias à sua pessoa. E, assim, chamou seu advogado e entrou com um processo de Dano Moral contra o seu vizinho e ex-amigo.
Armando não sabia mais o que fazer, pois estava perdendo dinheiro com os processos, mas precisava restaurar a honra da família. Após meses de brigas e discussões e mau-humor, sua esposa anunciou que queria se separar.
- Tu anda obsessivo, ausente e não te amo mais. Meu advogado vai te procurar para acertar sobre a pensão e a minha parte na casa...
E, assim, era mais um processo e mais trabalho para o advogado de Armando. Nesse meio tempo, como a loja estava fechada à espera de outro local, ele também foi processado na Justiça do Trabalho por sua funcionária que exigia o pagamento de horas extras. Por sua vez, Francesco que tinha ampliado a sua padaria também estava enfrentando problemas. Estava sendo processado por vários clientes que alegavam que o local estava infestado de baratas. E, assim, foi obrigado a pagar as indenizações e uma multa da Vigilância Sanitária. Para piorar a situação, ele andou perdendo muito dinheiro no pôquer e estava sendo processado por calote. E, assim, um e outro estava prejudicado financeiramente. Em contrapartida, seus advogados tinham ganhado muito dinheiro à custa de suas desavenças.
Passados alguns meses, Armando não era mais dono de uma boutique. Ele tinha hoje um brechó de roupas usadas, onde ele próprio atendia. Já Francesco administrava um trailer de cachorro-quente. Certo dia, ambos estavam no supermercado. Armando comprava ração para o cachorro, (que fazia festa e lhe sujava as calças quando o via chegando em casa) e Francesco comprava pães e salsichas para seu trailer. Era um encontro inusitado e embaraçoso que deixava no ar um "não sei se cumprimento, não sei se ignoro". Até que Francesco fez qualquer comentário.
- O preço do pão tá uma vergonha...
- E a ração de cachorro, então?
Silêncio. Cada um estica o pescoço para o carrinho um do outro.
- E como vai a vida?
- Bem, bem, bem...
- Olha, eu tenho que te pedir desculpas...
- Que é isso? Eu é que peço teu perdão...
E ambos apertam as mãos e retomam a amizade ali mesmo, entre as prateleiras do mercado. E o pedido de desculpas de um e outro, que parecia tão difícil há meses atrás, saiu espontâneo e sincero nesse momento, agora que estavam pobres.
- Tá convidado para ir jantar lá em casa, Armando....
- Só se eu puder levar meu jaguara, Francesco...