A MILÍCIA ME PROTEGE!!!

Mirna estava num hospital público para um trabalho da faculdade de Comunicação Social. Sentada numa cadeira fazendo umas anotações que achava importante. Alguns detalhes que enriqueceria sua pesquisa. A seu lado, uma senhora nos seus sessenta e cinco anos.

“-Talvez tenha menos idade, porém, a vida sofrida a envelhecera mais rápido...” – Pensou Mirna.

A conversa daquela senhora distraiu a estudante de Jornalismo e ao invés de concluir o que estava fazendo, interrompeu para atentar ao assunto que parecia interessante. As duas mulheres conversavam sobre as brigas de facções na favela onde uma delas morava. Mirna, curiosa como boa jornalista, não se conteve e falou:

-Boa tarde... Posso fazer uma pergunta para a senhora? – Disse para a mulher que aparentava mais idade.

- O que é minha filha? – Gentilmente a senhora respondeu. – É sobre a demora do atendimento é? Se for, é assim mesmo...

Mirna riu e continuou:

- Não... É que pude ouvir que onde a senhora mora está acontecendo uma guerra do tráfico... Eu gostaria de saber, como é seu dia-a-dia... Como é viver com um conflito desses, como é conviver com o medo de bala perdida, retaliações, essas coisas...

- A moça é jornalista, é? – Desconfiou Neuza.

- Ainda não, sou uma estudante... – Respondeu Mirna.

-Ah, minha filha... Então tome muito cuidado porque você deve saber o que aconteceu com aqueles jornalistas em Realengo... A jornalista foi estuprada e obrigada a fazer coisas que jamais pensou fazer e os jornalistas foram torturados com choques... Foi represália! Os agressores colocaram os jornalistas com os pés na bacia e ligaram umas tomadas e ficavam dando choques neles... – Disse pensativa a senhora Neuza.

-É... Eu soube e fiquei chocada com toda a violência. Mas, quando se tem paixão pelo que se faz, o medo fica em segundo plano. Medo acaba virando adrenalina...

- Bem, não tenho tanto medo porque tenho proteção. Eles estão sempre comigo e garantem que eu fique tranqüila, nada de mal me acontece. – Disse Neuza com simpatia.

Mirna começou a ficar desconfiada de que aquela senhora fazia parte de uma das facções, pois não demonstrava medo de conviver com traficantes, parecia normal para ela.

-Mas, dona Neuza, a senhora fica calma assim mesmo morando sob fogo cruzado? – Surpreendeu-se Mirna.

- Ah, moça bonita... A gente precisa levar a vida, não tem para onde ir. Nós, moradores da favela na verdade é como se não existíssemos... Poucos se importam realmente conosco, então ali a lei dos mais fortes é quem impera. E os mais fortes são os mais bem armados...

A jovem estudante ficava perplexa com a serenidade e com raciocínio lúcido daquela moradora de favela. Mirna percebeu que há muito preconceito em relação aos moradores de favela e ela mesma estava admirada com a ciência daquela senhora.

“-Quanta gente boa sofrendo por conta de alguns que querem ganhar a vida fácil com as drogas, com o falso poder que a droga proporciona. Falso e curto poder...” – Divagou Mirna por uns instantes. Então, voltou-se para a dona Neuza e disse:

- Dona Neuza, como a senhora faz para sentir-se tão segura assim? – Mirna queria a receita daquela passividade.

-Ah, menina... A Milícia me protege! – Respondeu eufórica dona Neuza.

Mirna viu que ali estava a resposta. Claro! Só podia ser mesmo a milícia que protegia e dava certa segurança para dona Neuza. A jovem ficou um tanto decepcionada com a atitude da dona Neuza. Mas, quem era a Mirna para julgá-la! Só vivendo numa comunidade carente para saber como se deve agir...

A senhora levantou-se e agitadamente recomendou para a Mirna:

-Aguenta um minuto que vou apresentar a Milícia para você. Onde quer que eu vá, eles me acompanham.

Por essa Mirna não esperava. Ficou tensa, preocupada... Não estava preparada para enfrentar a milícia. Podia ser perigoso... Lembrou-se do que aconteceu com aqueles jornalistas em Realengo. Mirna tremia. Bem que a senhora a alertou antes.

Dona Neuza volta ao lado de um rapaz negro, forte, olhar sério, intimidador...

-"Me dá" minha carteira, Jerônimo, por favor... – Pediu dona Neuza ao rapaz que não parava de olhar a estudante.

Naquela hora Mirna sentiu um gosto amargo na boca. Parecia que tinha assinado sua sentença de morte. Dona Neuza olhou para a Mirna e disse:

- Menina, você está passando mal? Seus lábios estão brancos...

- Ah... É que acordei cedo demais e tomei só um gole de café... – Disfarçou Mirna.

Abrindo a carteira, dona Neuza aproximou-se da estudante de jornalismo e disse:

- Essa é minha Milíca, todos eles estão aqui sempre comigo para me proteger. São os poderosos, com eles ninguém pode! – Havia um brilho nos olhos da dona Neuza.

A princípio Mirna pensou em dar uma desculpa para não testemunhar aquelas fotos, depois ficou aliviada e feliz ao ver que a “milícia” da dona Neuza não era nada mais, nada menos do que vários santinhos do Sagrado Coração Jesus, do Sagrado Coração Maria, Santo Antônio, São Judas Tadeu, Santo Expedito, Santa Terezinha, Santa Catarina, São Sebastião, São João Batista, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Gória Nossa Senhora de Fátima... E tantos outros santos que Mirna desconhecia o nome.

Rindo da santa criatividade daquela mulher, Mirna abraça dona Neuza e diz:

-Quem deveria protegê-la, na verdade, era nosso Governo com programas de policiamento permanente sem confrontos para garantir-lhe a segurança e a sua integridade e mais oportunidades para as crianças e jovens, mais trabalho, há muito o que se fazer...

-Enquanto não tem, menina, valho-me da minha proteção espiritual. – E olhando para o Jerônimo, a dona Neuza continua. – Este é meu neto Jerônimo, futuro Engenheiro Arquiteto! Meu maior orgulho, passou em décimo lugar no vestibular da Universidade Federal. É de admirar um rapaz pobre com uma alimentação fraca, ter tanta sabedoria! Só por obra e vontade de Deus mesmo, menina... Quando tinha doze anos ele fez o projeto da pracinha da favela, só não pôde assinar, foi o engenheiro Fêlix de Andrada quem assinou, mas consta os créditos para meu neto.

Dona Neuza era só felicidade. E não era para ser diferente. Criar uma criança com um ideal e futuro num ambiente em que ganhar dinheiro fácil é o caminho mais certo, é para se ter orgulho e muito. Era isso que Mirna pensava.

Mirna cumprimentou o rapaz e disse-lhe:

-Quando eu me formar, ainda irei entrevistá-lo sobre seu feito! Isso que soube merece registro e destaque, é um incentivo às outras crianças da comunidade.

Aquela fisionomia sisuda do Jerônimo deu lugar a um sorriso e Mirna pôde ver ali, um menino por trás daquela cara séria.

A enfermeira chamou:

-Neuza Araújo dos Santos.

Lá foi ela, a senhora protegida pela milícia dos santos. “Tinha de ser!” Pensava Mirna, dona Neuza tinha Santos até no nome...

Abrindo novamente a carteira, dona Mirna entregou a Mirna um santinho de São Brás (protetor da garganta), dizendo:

-Guarde com você, menina... Vai precisar! Jornalista fala demais... – Sorriu e entrou no consultório do seu geriatra.

Depois disso, Mirna rasgou toda aquela anotação que havia feito antes de começar a conversa com dona Neuza. A seu lado estava a matéria que seria a melhor de todas que havia feito até então. A milícia da dona Neuza!

Ficção.