Mudanças

— Aonde você está indo?

— À igreja, querido! Respondeu Letícia ironicamente.

— Eu não sabia que você gostava de rezar!

— Maria Madalena mudou. Quem sabe não acontece o mesmo comigo? Você não lê a Bíblia? — debochou. — E então, posso ir?

Ele não disse nada. A princípio não entendeu o que ela quis dizer. Não era muito inteligente pra pegar de primeira certas frases irônicas. Sabia que ela queria lhe alfinetar, pois jamais perdia uma oportunidade, mesmo assim deixou passar. E de Bíblia e igreja não entendia nada mesmo. A última vez que fora à igreja foi na missa de Sétimo Dia do pai, quando tinha oito anos. Desde então só conhecera o inferno em que se transformara sua casa com um diabo em forma de padrasto. Por fim, fugiu de casa e nunca mais voltou. As ruas eram menos violentas.

— Claro, concordo, querida. — Limitou-se a apenas três palavras.

Ela era bonita e talentosa. Talvez isso impedisse que Humberto lhe fizesse muitas perguntas quando ela decidia fazer algo. Sempre tinha uma carta na manga, e era dela, sempre, a última palavra. Ele era um simples cafetão, que vivia de explorar pobres prostitutas pelas ruas de Copacabana. Preferia as novatas. Gostava de impor regras, de humilhá-las, de explorá-las e de tirar delas até o último centavo. Mas quanto a Letícia não tinha muito que fazer. Ela era sua melhor garota – rebelde, mas dava lucro: era fina, tinha faculdade e falava vários idiomas. Na verdade não compreendia porque ela ainda trabalhava como prostituta. Talvez tivesse se acostumado, ou talvez não soubesse fazer outra coisa. As pessoas são assim mesmas, estranhas, cheias de enigmas... Se adaptam a tudo na vida, e depois que se acostumam não querem mais mudar. E com Letícia não era diferente.

Ficou olhando a bela morena sair e bater a porta enquanto lia um jornal. Antes que ela pegasse o elevador ele ainda gritou, ironicamente:

— Não vá me trair com o padre, querida!

— Claro que não, amor! Não gosto de homem que usa saias — respondeu cinicamente enquanto dava um último retoque na maquiagem já no espelho do elevador.

Gostava de Letícia, e até sentia um pouco de ciúmes dela, mas ele não sabia fazer outra coisa na vida. E ela jamais o aceitaria como namorado, nem à força. Isso não seria interessante pra nenhum dos dois. Portanto, era bem melhor continuar assim. Vez ou outra transavam sem compromisso, quando ela estava de boa vontade e queria lhe fazer um agrado; mas deixava bem claro: transava por transar, nada de cobranças. Segundo ela, queria sair um pouco da rotina, sentir um mínimo de prazer, pelo menos. E assim eles levavam a vida, juntos, mas separados.

“Maria Madalena mudou”, falou para si mesmo.

***

Lembrou do dia em que a conheceu. Passava pelo Porto Seis quando ouviu alguns palavrões e gritos em um ponto de ônibus. Dois travestis espancavam uma garota, ainda jovem, talvez dezessete anos, morena, de cabelos longos e pretos e com um vestido muito curto; curto até demais. Vulgar. Ele conhecia os caras, que também o conheciam. A verdade era que todos ali o conheciam por sua fama de violento, e quase todos o temiam.

— Ei! Vocês ai! — gritou. — Deixem a garota em paz.

— Ela está no nosso ponto, essa piranha atrevida. Será que ela não sabe que aqui é área de “meninas”? – respondeu um deles.

— Não, ela não sabe — respondeu Humberto. — Conheço a garota, ela é nova na área e está comigo, mentiu.

— Sei, gostosão. Mais uma piranhazinha barata pro seu “curriculum vitae”, debochou um travesti.

Pegou Letícia pela mão e a arrastou até um quiosque do outro lado da avenida.

— Você é louca, garota, ou o quê? Tá a fim de morrer, é? Como é que você vai ficar em ponto de traveco sem conhecer ninguém?

Ela, assustada, nada dizia. O vestido todo rasgado, um dos sapatos na mão e o outro havia perdido; a maquiagem toda borrada pelas lágrimas que desciam em seu belo rosto... nem mesmo a bolsa sabia onde tinha ido parar. Queria agradecer aquele homem que a salvara, mas não conseguia dizer uma só palavra. Sua garganta estava seca; seu coração ainda em disparada. Correu em direção a avenida Rainha Elizabeth, sem mesmo saber pra onde ia, enquanto ele gritava pra ela voltar.

— Volte aqui, sua maluca. Eles vão te matar se te pegarem por aí.

Mas ela o ignorou e saiu em disparada atravessando na frente dos carros que buzinavam, enquanto alguns motoristas gritavam: “Sai da frente, piranha! Que morrer?”

Dias depois ele a encontrou por acaso em um bar na Prado Junior, tomando uma caipirinha e conversando com um gringo. De início, ela não o viu. Ele a observava, admirado. Ela falava outro idioma, inglês, talvez; não, inglês não. Todas as prostitutas dali falavam um pouco de inglês, e ele, apesar de nunca ter estudado nenhum idioma, só de ouvi-las falarem sabia distinguir o inglês de outro idioma. Talvez fosse francês, alemão... Seria um bom investimento. Se aquela ainda não tivesse dono, seria dele. Já a havia salvado uma vez; ela lhe devia favor. Era um bom começo.

Minutos depois ela o viu. Deixou o cliente de lado e foi falar com ele.

— Oi.

— Oi.

— Queria lhe agradecer por ter me salvado naquela noite. Obrigada mesmo.

— Não precisa agradecer. Só tenha mais cuidado da próxima vez. Aqui em Copa nem sempre há um herói por perto. — Sorriu.

Ela também sorriu. Ele pediu duas caipirinhas, e brindaram.

*****

Ele respirou profundamente. Letícia era mesmo diferente de todas as garotas que havia conhecido. Seria bom se pudessem se apaixonar de verdade um pelo outro. Quem sabe um dia...

Levantou do sofá, pegou o paletó e saiu para o seu primeiro dia de trabalho como segurança em uma boate na Barra da Tijuca. Orgulhoso de si, pois, pela primeira vez na vida ia para o trabalho. Um verdadeiro trabalho. Enquanto a poucos quarteirões dali Letícia dava aulas num cursinho de idiomas.

Mudanças estavam acontecendo. Em alguns meses eles teriam um bebê.

Poeta do Riacho
Enviado por Poeta do Riacho em 09/01/2009
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