As Imperfeições do Amor Perfeito
A gélida chuva fina caia sobre sua cabeça. Refazia mentalmente os passos de ainda a pouco. Como tudo se deu e como as coisas foram ditas. As lágrimas caladas e sentenciosas dela e seu próprio choro que não se verteu em pranto, mas o afogava em sua alma.
Repensava os caminhos que o levaram até aquele momento. Aonde errou? Se errou, foi consigo ou com ela?
Lembrou-se das primeiras palavras proferidas e das primeiras impressões que teve daquela moça de olhar triste e distante ao conhecê-la anos atrás. Havia conhecido a beleza naquele exato segundo em toda a sua amplitude. A Harmonia de seus traços, o gestual de seu corpo, os tristes e belos olhares, o sorriso infantil. Percebeu que a amava não desde a primeira vez que a havia visto, mas a amava desde antes de conhecê-la.
A chuva fustigava seus ombros doloridos. Encontrava-se num estado de espírito singularmente ruim e isso refletia em seu corpo, talvez pela tensão sem precedentes que passara nas últimas horas, talvez um mero resfriado que se anunciava. Sentia que seu futuro havia sido selado em definitivo e nada mais poderia trazê-la de volta ou levá-lo a ela. Queria tragar um cigarro, mas a cortina d’água não dava trégua. Queria o consolo do vício. O afago da fumaça em seu rosto para esquecer o afago que não receberia dela.
Procurou abrigo próximo a uma marquise, retirou o maço de cigarros surrados dos bolsos de sua calça empapada e fria, o isqueiro, as primeiras tentativas e enfim a pequena chama trêmula. Baforou algumas vezes com a pequena chama tremeluzente protegida por entre as mãos. Olhava o ponto luminoso e sentia-se vazio. Um soldado sem pernas fora de combate, caído numa vala repleta de lama. Afogara-se em sua própria tristeza.
Já não procurava afastar os pensamentos que insistiam em consumi-lo de dentro para fora. A rua deserta e o frio que aumentava gradualmente o fizeram pensar que talvez houvessem anjos e que estes estivessem chorando a sua dor. Sorriu. Riso triste. Deixou-se levar pelas memórias recentes.
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– Alô? – O telefone tocou naquela manhã como em tantas outras. Displicente e estridente. Atendeu com certa preguiça, imaginando que seria algum convite de seus amigos para um programa daqueles que ele tanto evitava por não compactuar com os mesmos gostos ou pelo simples fato de ser domingo. Ele gostava de ficar em casa nos finais de semana. Poderia ser qualquer pessoa, mas era ela. Haveria sim um convite.
Depois de um breve silêncio aquela voz, inconfundível aos seus ouvidos, proferiu as primeiras palavras do dia que ouviria e também as últimas antes de deitar-se novamente.
– Oi. Acordei você?
– Olá! Não esperava que telefonasse. – Seu coração disparou, suas mãos tremeram, o estômago encolheu-se quase a ponto de implodir e tudo isso em segundos – Não... Claro que não me acordou. Levantei há pouco. Como você está?
Ela percebia a emoção em sua voz e sorria docemente. Gostava do jeito como ele atrapalhava-se sempre que a ouvia. Aproveitando o momento de fragilidade e exposição dele não resistiu à brincadeira.
– Estou com saudades – Disse, enquanto o pobre diabo caçava algumas palavras para não parecer tão idiota. A breve expressão que ela usara cortou o ar feito lâmina. Desarmou-o de qualquer tentativa de recompor-se.
– Eu... Eu também. Muitas.
Alguns dias antes, os dois haviam se encontrado e ele, depois de anos de amor velado, declarou-se a ela para que, enfim, fosse dispensado e seguisse com sua vida. Mas ela não o dispensou. Pelo contrário. Disse o quanto estava surpresa e que até sentia-se lisonjeada que ele nutrisse sentimento tão nobre por ela. Ela pareceu encabular-se em alguns momentos e ficava a remoer com seus botões o que aquilo poderia significar, pois eram os melhores amigos e davam-se bem em tudo. Há quem chame de almas gêmeas ou irmãs e eles brincavam com isso, mas não como dois jovens enamorados, apenas como amigos de longa data. Ela era noiva de um de seus amigos.
Sendo ela comprometida era inconcebível que tentasse tomar qualquer atitude que pudesse ferir o noivo, a ela ou mesmo sua moral, pois não queria se interpor em nenhum relacionamento, mesmo que isso lhe custasse noites insones. Soube em uma dessas conversas que o relacionamento deles não ia bem, mas procurava respeitar as decisões dela. Se ela ainda mantinha a relação era sinal de que, bem ou mal, ainda eram um casal e deveriam se amar.
– O que tem feito de bom? – Ela perguntava como que para esconder uma outra intenção. Um embuste até que tivesse coragem de dizer quais eram suas intenções reais para aquele dia.
– Além de pensar em você, nada demais. O mesmo do cotidiano. – Ele se surpreendia com sua ousadia patente, mas sentia que estava procurando ser natural e o natural era cortejá-la, pois a amava loucamente, mesmo que não avançasse o sinal da prudência. Ela parecia deliciar-se com esses pequenos momentos de ímpeto que ele demonstrava vez por outra.
– Pensar em mim faz tanta diferença assim?
– Sempre fez, minha querida. Sempre foi uma ilha. Um refúgio num mar de pequenos problemas diários.
– Também penso em você. – E a voz dela agora pareceu triste e distante. Como se alguma lembrança a sacudisse.
– É tão estranho – Balbuciou ele, parecendo sufocar.
– Estranho?
– Sim! Imensamente estranho. – Sua voz soou mais forte agora – Eu te amo, já o disse, mas percebi que você... você não me evita. Não me afasta ou me diz que isso é loucura. Um erro. Sinto que também tem sentimentos por mim. Não pode ser outra coisa. – Ele podia ouvir a respiração entrecortada da garota do outro lado – Amo você há tanto tempo e permaneci calado por todos estes anos. Decidi dar cabo dessa situação. Se fosse logo rejeitado por você eu não... – Calou-se.
A moça silenciara. Talvez aguardasse que ele concluísse a frase ou as palavras é que lhe fugiam agora. Enfim, começou a dizer em tom baixo e trêmulo.
– Eu não sei o que pensar às vezes. Eu queria saber. Ter o que dizer, mas não tenho.
– Então não diga. Verbalizar sentimentos é um crime contra a humanidade. – Ela sorriu, o mesmo riso triste, e ele se sentiu tolo pelo que havia dito, mas não resistiu por muito tempo e também sorriu.
– Tem planos para hoje? – perguntou a moça já com sua voz doce.
– Hoje? Pensei em ficar em casa. Assistir TV, alimentar os peixes, ficar deitado e não pensar em nada.
– Que pena...
– Por que? Alguma dica? Você me conhece e sabe como pareço um velhaco às vezes. Gosto de ficar em casa nos finais de semana.
– Ia dizer para nos encontrarmos hoje, mas... – Dizia ela pausadamente.
– Hoje? – Mal pensou e logo respondeu – Vou. Sim, vou vê-la.
– Vai? – Talvez ela mesma não acreditasse que conseguiria tirá-lo de casa, mesmo tendo a certeza do amor que ele sentia por ela e depois do breve diálogo que tiveram a pouco, sem contar os outros desde que ele assumiu seus sentimentos perante ela –. Ótimo! Nos encontraremos no mesmo lugar da última vez. Às 16:00 hrs está bom?
No mesmo lugar, pensou.
– Sim... Está ótimo. Ótimo! – Seus olhos crisparam. Sentia o coração descompassado e a boca secar-se. “Enfim, tenho alguma esperança de tê-la comigo. Esperança”. – Estremeceu ao pensar numa palavra que não havia se dado ao luxo de utilizar nessa situação em nenhum momento. Era novo e, por ser novo, assustador.
Despediram-se. Aproximava-se o horário de almoço. Ele não pôde comer e nem mesmo aquietar-se. Ouviu repetidas vezes a música que ela dissera certa vez que o lembrava. Ele, fã de Jazz, ouvia “Stormy Weather” com duplo prazer. Por ser uma versão com Billie Holiday e por ser a primeira de suas músicas. Outras viriam, não havia dúvidas quanto a isso. Um trilha sonora completa a embalar seus dias e noites. Juntos. “Esperança”. O medo ainda transitava em sua mente brincando com essa palavra.
Arrumou-se lentamente e poucas horas depois partiu em busca do amor que, se não lhe foi prometido, também não lhe foi negado. Por ora, isso bastava. Era combustível o suficiente para que chegasse até o ponto de encontro. Gastou tanto tempo escolhendo a roupa que seria mais adequada para a ocasião que percebeu que se atrasaria. “Atrasado para um encontro com o destino”. Riu-se de sua sagacidade, mas preocupou-se e acelerou o passo.
Estava nublado e havia chovido há pouco. Ainda havia poças no asfalto. Pensava consigo mesmo se ela apanhara a chuva. Já se preocupava como se fosse namorado, noivo ou marido daquela mulher. A rua era retomada pelas pessoas lentamente e ele seguia com passos cada vez mais confiantes e decididos.
Chegou ao local marcado com o coração aos tropeços. O relógio marcava 16:15 hrs. Buscou rapidamente com os olhos sua amada – já a tratava assim em seus pensamentos desde que desligara o telefone – e não a viu. Girou para o outro lado e pousou os olhos na garota que seria mãe de seus filhos. Síncronos no encontro mais importante de sua vida. O destino cumpria seu papel nos mínimos detalhes.
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Ela caminhou até ele com o sorriso mais lindo que vira em toda a sua vida. Calças jeans, uma delicada blusa de tom verde-escura que realçavam a beleza de sua tez alva, uma jaqueta justa na cintura que faziam o modelo se tornar mais delicado e feminino. Abraçaram-se demoradamente. O perfume de seus cabelos lisos o fez suspirar profundamente. A vida tornara-se perfeita entre este abraço. Todas as mazelas esquecidas e os problemas deixados em algum lugar no meio do caminho que percorrera até os braços dela. Ela foi se adiantando em explicar por que chegara quinze minutos depois do horário combinado, pois ele não era dado a atrasos.
– Desculpe, a chuva sempre atrapalha e a condução demora...
– Não se preocupe. Chegamos juntos! Atrasei-me também – Sorriram cúmplices.
Colocaram-se a caminhar lado-a-lado conversando sobre todos os assuntos que lhes eram pertinentes – e não eram poucos -. Falaram sobre política, música, artes e alguns livros que haviam lido recentemente. Os livros que o outro, porventura, ainda não tivesse tido contato eram explicados com breves citações e explanados, quando o assunto em voga assim exigia. Seguiram até o café que sempre visitavam juntos e mantiveram uma conversa animada e cheia de olhares e sorrisos, diferentes dos usuais. Ele citou pequenas passagens de Ernest Hemingway enquanto tomavam café. “Não pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”. O poema de John Donne que inspirou Hemingway também o inspirava a amá-la ainda mais naquele momento. “Os sinos dobram por ti” repetia a si mesmo ao olhá-la.
Terminado o café, caminharam mais um pouco. Ele procurou seus cigarros e ela os dela. Fumavam os dois, mas ele a repreendia, por puro mimo. Próximo de onde estavam havia uma igreja antiga que mantinha, religiosamente, o hábito de tocar os sinos. Não saberia dizer quando eles iniciaram seu melodioso ressoar, simplesmente o som já estava ali, mas achou que citar John Donne novamente poderia demonstrar uma certa falta de imaginação, e ele ainda gostava de impressioná-la. Resolveu então brincar dizendo que, ao olhá-la, podia ouvir sinos. Ela sorriu e disse, com certa afetação teatral, que o mesmo efeito se apossava dela. Ele tremeu ao ouvi-la proferir essas palavras Lhe faltou tato naquele momento para seguir com a brincadeira. Perdeu-se. Numa rápida justificativa, lamentou que havia se esquecido de apanhar uma blusa por pura desatenção e pressa, pois havia chovido e o tempo nublado era um forte indicativo de que esfriaria ainda mais até a noite. Seguiram em busca de um banco para descansar um pouco e conversarem mais reservadamente.
– Passará frio, seu distraído – Dizia ela com preocupação quase materna, ainda que fosse mais jovem que ele.
– Que os ossos gelem, o que vale é manter o coração aquecido – Ele esboçou um sorriso, ela não.
– Poderíamos tomar outro café, fumar outro cigarro. Talvez nos aquecêssemos um pouco mais assim – disse ela olhando para um ponto fixo qualquer, mas perdida dentro de si em pensamentos.
– E se, ao invés de colocar um cigarro em seus lábios... – Ele hesitou por um segundo – e se fossem os meus lábios a tocarem os seus?
Neste momento ela afastou-se um pouco e desviou o olhar do ponto fixo, ou a atenção de si e de seus pensamentos.
– O que houve? Eu não compreendo. Tudo o que dissemos um ao outro. O que devo esperar? – Ele não queria demonstrar tanta surpresa, mas a emoção de um momento nos custa agir com razão.
– Eu não sei – respondeu a moça a meio tom – É tão complicado às vezes.
– O que é complicado? – Ele percebeu que sua voz agora se exasperava e procurava controlar o tom com que diria as próximas palavras. – Cada vez que nos vemos ou nos falamos sinto que, este sim, seria o caminho correto. O certo conosco.
– Mas meu noivo...
– Eu não desejo a tristeza de ninguém, tampouco a minha e a sua. Sei que vocês não estão bem há tempos e sigo como espectador disso tudo quando poderia ser parte efetiva da sua vida, mas imaginar que ‘poderia ter sido bom’ sem ao menos tentar... Isso é inconcebível para mim. Encontrar pessoas que sejam tão iguais e complementares... Preste atenção a sua volta. Veja como as coisas se encaminharam até aqui. Os enganos cometidos ao longo dos anos. Agora seria a hora de selar o que o destino nos reservou, não vê? – Sua agonia ao dizer cada palavra fazia com que ela balançasse a cabeça negativamente, mas como se dissesse ‘não’ a algo ou alguém que sequer estava ali.
– Tenho medo. – Ela levantou a cabeça rapidamente e o olhou nos olhos – Tenho muito medo de tudo isso.
– Medo... do que sentimos um pelo outro?
– Medo. Medo desse sentimento. – E ela seguiu, abrindo-se lentamente em cada palavra que arrancava de dentro de si – Você sabe o que é temer o amor? Sabe o que é você idealizar uma pessoa cheia de pequenos detalhes ao longo da vida e tão... única que seria incapaz de encontrá-la. Por proteção, entende? – Ela tremia – Tenho medo do que sinto e medo de perder. Medo de perder o que não se tem.
Se ele a compreendia? Clara e translucidamente, pois era pelo mesmo motivo que a evitara durante anos. Por perceber que seriam mais que amantes, mas almas cúmplices um do outro. Pensava na dor da perda sem sequer tê-la beijado nos lábios uma só vez que fosse. Imaginava despedidas e sentia que, se a tivesse uma única vez, seria para sempre. Não encontraria em outra mulher o conforto que, tinha certeza, sentiria estando em seus braços. Procuraria ser benemérito de seu valioso amor e tudo o que ele representaria. Agora, sufocava em pensamentos mais uma vez, como em tantas outras noites. “É óbvio. Está claro. De tão semelhantes, como deixei passar a possibilidade de que ela temesse os mesmos horrores de entregar-se e perder-se em si por um amor tão singular”. Em silencio, cada um pensava por si, mas mesmo ali pensavam igualmente. Enfim, ele disse:
– Entendo. Passei por estes mesmos receios. Imaginei que ao declarar-me receberia minha carta de alforria, pois era escravo do desejo. Não contava que poderia me amar e agora, percebo que somos mais parecidos do que nós mesmos julgávamos.
Ela ouvia suas palavras com a cabeça baixa, nem sequer parecia respirar. Nada. Nenhuma palavra até que a primeira lágrima correu por sua face. Ele imaginou que estava diante de uma estátua, dessas que praticam milagres. Lágrima da mulher que ele beatificou em seus sonhos ao longo de toda a sua vida. Sentia um amor inefável por aquela mulher e agora sabia exatamente o que fazer. Levantou-se lentamente. O coração lhe doía como se estivesse sendo golpeado inúmeras vezes por milhares de mãos raivosas.
– Você sempre será minha alma irmã. Espero que encontre alguém que lhe faça feliz e que saiba respeitar...
– Eu encontrei – Disse ela rapidamente, com a voz entrecortada e em meio às lágrimas. Sorriu pela última vez.
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A fina chuva dava ares de que não se interromperia até a madrugada.
Ele terminou seu quarto cigarro desde que parara na marquise e relembrara tudo o que havia se passado. Cruzou os braços sentindo frio. Tremia febrilmente.
Ouvia o som da água que vertia dos telhados próximos e parecia ouvir Billie Holiday ao fundo, agora num lamento. Pensava em quantas pessoas no Mundo tinham a sorte de encontrar as almas designadas a elas e o azar de, logo em seguida, perdê-las.
“Não são os opostos que se atraem. Todos temos medo de encontrar a pessoa certa e depois, por milhares de motivos que surgem a nossa frente durante nossas vidas a todo tempo, perdê-las para sempre. A dor da perda humana transpõe qualquer outro mal”.
Seguiu seu caminho. Suas tardias lágrimas misturavam-se à chuva.