MEIA VOLTA

(Para Mauro Décio de Azevedo Melo, testemunha ocular deste causo)

Quando dona Maroca colocou o leite quente na mesa para ensopar o cuscuz, o fazendeiro Joel perguntou a seu filho:

- Depois de tomar café, você pode ir na fazenda de dona Tonha Galdino buscar uma rês que ela me deu?

- Posso sim pai. Qual é a rês?

- É a malhada de preto. Dona Tonha Galdino disse que nessa terra não tem cabra macho prá fazer esse serviço. Que se ela fosse mais moça ia ensinar como é que leva um animal brabo prá qualquer lugar, sem usar corda, sem nada.

- Mas aquela bicha é o fute, parece que tem o cão no couro.

- Que negócio é esse aí? Que história é essa de dizer o nome do inimigo na mesa? Bata na boca menino. E você seu Tota, não se ria não que hoje eu não amanheci boa não. Hora de comer é hora sagrada, mude o rumo dessa prosa Joel. Você não sabe como esses meninos são?

- Ta bom Maroca. Os meninos não vão mais falar no nome do cão quando estiverem na mesa...

- Eu tenho é vontade de despejar água quente em cima de vocês quando começam com isso...

E em sinal de protesto, dona Maroca levantou-se da mesa para sair.

O marido levantou rápido e atravessou-se na frente, impedindo a passagem.

- Que é isso mulher... Volte para seu lugar... Não faça um negócio desse... Você não sabe que a gente está brincando...

- Mas eu não gosto desse tipo de brincadeira.

- A gente não fala mais não, ta certo? Venha, venha sentar...

Quando dona Maroca passou por Tota, o afilhado, deu-lhe um cascudo.

- E você não se ria não, seu sem vergonha.

- Ai! Madrinha, que mão pesada a senhora tem...

- É pra ver se boto juízo nessa cabeça oca. (e virando-se para o filho) Você também seu Neco, comporte-se...

- Desculpe mãe, foi sem querer...

Comeram em silêncio. Dona Maroca na cabeceira da mesa fez a oração de agradecimento.

Os homens foram para a varanda, enquanto as mulheres da cozinha retiravam os talheres.

Dona Maroca sentou na cadeira de balanço para rezar o primeiro terço do dia.

O segundo seria depois do almoço e o terceiro depois do jantar.

Era promessa...

Só faltava ano e meio para terminar os cinco prometidos.

- Pai eu vou levar Tonho de Lia para ajudar porque, eu e Tota só, não consegue não.

- Tonho de Lia vai dar mais trabalho que a rês. Nessa hora já está cheio de aguardente. Eu acho melhor levar uma boiadinha prá ela vir no meio.

- Vem não padrinho. Dona Tonha Galdino já deu essa rês a uns três cabras e ninguém consegue fazer ela passar da porteira velha.

Quando vai chegando ali, ela aperta o passo, vai ficando para trás e quando menos se espera, se dana na carreira de volta prá trás.

- Vou pegar seu cavalo, viu pai. O meu perdeu uma ferradura ontem de noite e se eu for mandar botar outra, com o tanto de conversa de Geraldo Magro, a gente só sai daqui amanhã.

- Cuidado com Carimbó. Tem tempo que não é montado prá tanger gado. E ta gordo, ta fogoso...

- Comigo ele vai, ele não está com a doença... Eu arrocho bem a cilha. Não vou cair não. Vamos Tota?

- Vamo, vamo, vamo, vamo, vamo, bença padrinho.

- Deus te abençoe!

- Bença pai.

- Deus te faça feliz. Carece de eu ir?

-Oxe pai! Nunca precisou...

- Não vai ser hoje, né não Neco?

Em menos de maia hora os dois jovens estavam na estrada que liga a fazenda de Joel Mendonça, criador de gado de corte da raça Nelore e a da dona Antonia Emerenciana Souza Sales do Monte Verde Galdino, criadora de gado de leite, mestiço de Holandês com Gir leiteiro, produtora de queijo.

Mulher disposta e valente, respeitada por todos, desde que assumiu a direção da fazenda, depois da morte do marido e do filho adolescente numa tocaia.

Nunca mais casou...

Vive na fazenda só com os empregados, atira com as duas mãos em qualquer tipo de arma, cano longo ou curto, tanto faz.

Todo mundo sabe, mas ninguém tem coragem de dizer, que ela mandou caçar os cabras da emboscada, ela mesma, sangrou os três como se sangra porco e depois, mandou botar os corpos na pista e passar o caminhão por cima para esbagaçar.

Quando Neco e Tota chegaram, dona Tonha Galdino estava conferindo a partida de queijo coalho que ia mandar para o Recife.

- Bom dia dona Tonha. Pai mandou ver a rês que a senhora deu a ele.

- Ôxe!, Mais de oito da manhã! Isso lá é hora... Cadê o caminhão pra levar?

- A gente vai levar ela andando...

Dona Tonha Galdino atirou na cara dos dois, uma gargalhada de deboche e de pouco caso.

- Vocês dois? Só vocês? Dou outro boi se vocês passarem da porteira velha...

- Dona Tonha, a gente leva essa bicha hoje, nem que seja as bandas...

- Taí uma coisa que eu quero ver... Jesualdo, mostra a rês prá esses meninos e deixa a porteira aberta, porque ela vai voltar.

Dizendo isso entrou em casa ainda rindo da cara de bobo dos dois rapazes.

A rês fez todas as mogangas que sabia para não ser laçada...

Quando finalmente Tota conseguiu, a bicha botou prá cima do cavalo dele que quase derruba cavalo, cavaleiro e tudo.

Aproveitando-se da confusão, Neco passou outro laço no pescoço da rês e arrastou ela para longe do cavalo de Tota.

Carimbó sabia fazer o serviço...

Contida por dois laços a rês não teve alternativa a não ser seguir os cavalos que a puxavam.

Caminharam bem até perto da porteira velha.

Como não podia voltar porque estava laçada, a rês que tinha o nome sugestivo de Meia Volta, deitou no canto do caminho.

Neco desmontou e torceu o rabo da bicha para fazer ela levantar.

Foi mesmo que nada...

Tome pau no lombo.

Nada.

Apelaram para fogo debaixo do rabo.

A bicha levantou com todos os diabos e desabalou numa carreira doida de volta para casa.

Um dos laços estava amarrado no cabeçote da cela de Tota e o cavalo foi sendo puxado até que Neco segurando o outro laço, fez a rês dar meia volta.

Inicialmente trotando, depois andando rápido, depois andando de vagar, mais devagar, parando e parou...

Pau na anca, pau no lombo, arrastado pelo rabo, a rês deitou de novo. Outro fogo.

Levantou, mas não saiu do lugar...

Mais pau no lombo.

Menos de cem metros na frente, deitou de novo...

Outro fogo.

Levantou.

Saiu mais rápido dessa vez, mas andou pouco.

Deitou de novo.

Mais fogo...

E, nessa peleja, foram-se as horas claras do dia...

Só os cavalos mordiscavam aqui, acolá um capinzinho enquanto os homens pelejavam para fazer a rês andar...

Chegaram tarde...

Noite escura...

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Na mesa do café da manhã, dona Maroca trouxe o leite quente para ensopar o cuscuz.

- Viu a rês, pai?

- Vi. Deu muito trabalho não foi?

- Ô!

- Vamos comê-la no almoço...

- Ôxe padrinho! Não vai engordar primeiro?

- Metade dela já ta assada menino e eu nunca vi ninguém engordar meio boi. Mandei Lulinha matar e fazer carne de sol. É só para que serve.

- Sim pai. Dona Tonha Galdino disse que dava outro boi se a gente trouxesse a rês até em casa.

- Eu sei... Jesualdo já trouxe.

Ela mandou seguir vocês e mandou o recado para mim de que, agora, nessa terra, tem dois cabras machos, bons de serviço.

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Esse texto foi produzido sem levar em conta a forma culta da língua portuguesa. Procurei reproduzir o mais fiel possível, a maneira pernambucana de falar. Muitas vezes inculta, mas sem dúvida, melodiosa.