E.../A PIANISTA/

E...

Tem dia, diz o escritor, o tal contista, que ele sente as coisas, as grandes, as médias, até mesmo as pequenas, e essas principalmente, com uma intensidade inominável.

A sombra usada em volta dos olhos pela garota de pele morena, que trabalha numa lanchonete dia desses por exemplo, penetrou-lhe body and soul como se fosse um punhal, faca de serra na manteiga, par de coturnos na neve, dentes na polpa da pêra madura...

Aquele samba cheio de ternura e verdade cantado por Cartola, num programa de televisão, falando de seu casamento com Dona Zica, moeu-lhe o coração na boquinha noite.

O pé de ipê roxo ali na praça carregado de flores, doeu-lhe os olhos de tanta lindeza.

O casal de velhinhos maltrapilhos apoiados num pedaço de pau, pela ruas da cidadezinha do interior de Minas. A dona carregava uma boneca esfarrapada no colo. Lembrança de uma infância feliz jamais vivida? Ou memória de uma filha falecida ainda na infância?

E outras coisas tipo uma criança de idade tenra no colo da mãe na fila de um hospital, uma carpa chinesa singrando no aquário na madrugada, uma estrela cadente que risca o céu noturno de setembro, um amigo que se despede tão cedo, um amor antes tão tórrido e que se vê agora perdendo o fôlego, o fogo, e...

A PIANISTA

A pianista tocava um samba de Noel, numa esplêndida manhã de sol.

Ela colocava tudo de si nas notas musicais, nas nuances da melodia, realçava com talento a sofisticação da harmonia, a cadência corretíssima. Ela simplesmente era a tal.

De repente, um vento inusitado, arrastou a nossa pianista até a janela de seu apartamento e soltou-a no ar e, assim,ela começou a voar pelo céu, como uma personagem do livro “cem anos de solidão”, ao estender um lençol.

Lá se foi a nossa pianista a subir, subir, como se fosse um avião a ganhar altura após decolar.

Sobrevoou o norte de minas, sul da Bahia, extasiou-se com o mar verdeazul de Porto Seguro. Ela achava sensacional a sua condição incomum de pássaro humano.

Flagrou o povo pernanbucano a ferver no frevo , no maracatu e no mangue beat.

Avistou no Rio Grande do Norte o maior cajueiro do mundo.

No céu de São Luis do Maranhão, lembrou-se do poeta Ferreira Gular, de quem é fã confessa.

Viu em Belém do Pará o mercado Ver-o-peso, aspirou de lá do alto os odores das comidas regionais, os perfumes singulares do Grão-Pará.

Subitamente, ela e seu piano despecaram-se das nuvens sobre o solo da floresta amazônica.

Ela recompôs suas roupas, cabelos, e sentada no seu banquinho de pianista quis duetar uma canção com o uirapuru, pássaro lendário.

Mas o uirapuru, assim como as minas do poeta Drummond , já não há mais, nunca mais...

CAIO DUARTE
Enviado por CAIO DUARTE em 24/10/2008
Reeditado em 24/03/2009
Código do texto: T1246326