O conto de Natal
“A árvore de natal, não posso negar, era mesmo bela. A família apenas a admirava.
Era um dezembro bem mais frio que tantos outros, consigo lembrar-me. Ruas desertas, mas um certo contraste existia no interior das casinhas da vila: luzes acesas, espaços cheios de gente – as famílias reunidas. A minha, tão desigual...
Lá em casa, mamãe já dormia desde as oito. Papai enchia a cara com o conteúdo de um velho litro de conhaque. Não o soltava nem por um instante. Meus irmãos, os três, folheavam revistas velhas sentados no chão da sala de estar, com ares nada natalinos.
Eu, apesar de novo – só tinha treze anos –, esticava o olhar entre meus irmãos e papai. Este talvez, mais necessitado de nós, àquela hora, quase embriagado, quase gente – um farrapo humano.
Ceia de natal! Ceia de natal! Um conto de trancoso, uma metáfora obscura de algum desejo antigo. Era a noite mais longa que achávamos. Gostava quando no dia seguinte dona Leocardiana levava as sobras de sua ceia e nós nos fartávamos. Mamãe devolvia os depósitos limpíssimos e, não nos faltava alguma coisinha que não puséssemos dentro deles, como prova do nosso carinho, pelos presentes recebidos, doá-la. Neste último ela pôs dois botões de rosas vermelhas. Era o que podíamos dar à velha generosa que morava duas casas após a nossa.
A boca do sino gritou longe, era o da igrejinha da vila. Hora triste. Eu só ia dormir após ouvi-lo, benzer-me e pedir a bênção a meus pais. A meia-noite nesses dias era diferente.
– Mamãe..., mamãe, sua bênção.
Ela abraçou-me, beijou-me demoradamente e falou:
– Você é um bom filho, nunca se esqueça da meia-noite dos nossos natais tristes...! Seu pai, onde está? Vá até ele, abrace-o.
– Lá na copa, sentado, pra lá de bêbado.
– Coitado do Ozolano..., nunca venceu esse vício triste. Não vou lá; seria pior para ele.
– Eu vou por você, mãe. Vou beijá-lo e pedir sua bênção.
O sino badalava o canto de tristeza, um som fino, longínquo, martelador..., cheio de uma lânguida voz. Cadê Jesus menino em nossa ceia?
Deixei mamãe no quarto e fui até onde ele estava. André, Luis e Alfredo dormiam no chão da sala do televisor. Acordei-os e os fiz ir para suas camas. Os dois primeiros dividiam a mesma, enquanto Alfredo fazia-na na rede do corredor entre a sala e a cozinha.
No vértice frio da copa, lá estava ele sentado na velha cadeira de balanço, já sem o acolchoado. Tinha a cabeça tombada para o lado da parede, sem alcançá-la. Resmungava e eu ouvia apenas os murmurinhos de sua insatisfação. Estava completamente embriagado. Trazia a calça molhada de urina, o abdômen globoso à custa do fígado crescido pelo excesso do vício, pés edemaciados, olheiras profundas que enfeiavam a face.
Pus a mão direita por sobre seu braço esquerdo, alisei-o e aí tive o seu olhar murcho encontrando o meu.
– Fiii....lho...., vocêêê.... vá dormiiir....
– Sua bênção, pai e feliz Natal.
– Eu ouvi.... o sino tocar e...., me lembrei de vocêê....
– E agora posso ir deitar-me até amanhã. Vamos para o quarto. Quer que lhe ajude a levantar-se daí?
– Não! Tô bem!
– Vai acordar-se com as costas doloridas.
– Não! Saia daqui, vá dormir, não me aborreça. Já lhe faaleei tudo!
Deixei-o descontente, e cabisbaixo, cheio de desesperança. Perdi a conta dos natais que o vi daquele jeito. Papai aposentou-se cedo, devido a convulsões misteriosas que o importunavam, mas nunca ficou bem claro seu diagnóstico. Por isso, perdeu a vontade de viver. Fora um metalúrgico exemplar, muito procurado para serviços. Enquanto trabalhava, dávamos fartas ceias de natal.
Saí dali, fui dormir e tive a noite inteira para sonhar em mesas com fartas ceias e muita gente confraternizando-se. A madrugada foi-me curta demais para caber todos os sonhos. No dia seguinte mamãe foi faxinar na casa alheia, papai foi jogar dominó na praça com seus amigos aposentados, os meninos para o colégio comigo. Só nos restava viver nossa vidinha comum, mas eu, sem jamais pensar eternamente na tristeza, queria crescer, construir uma família alegre, ter filhos, poder compartilhar com todos natais diferentes, alegres, fartos, sem excessos; contanto que não tivessem tantas faltas”.
– Papai, mas hoje é Natal. Por que nos conta esta história tão triste? Não somos pobres.
– É para você, Julhinho, quando for adulto, poder lembrar-se que nem todos têm o que nós conseguimos na vida. Os sinos dobram diferentemente para os cristãos. Na vida há desigualdades gritantes.
– Parece que o senhor fala como se fôssemos ficar pobres...
– Se um dia isso nos acontecer, lembre-se dessa história e só assim não nós faltará tudo. Nossos natais poderão ter a fantasia de um conto e boas lembranças da vida.
– Eu vou lhe ver bêbado com esta historieta?
– Jamais! Prometo que irei dormir com sua mãe após o primeiro gole de conhaque.
– Você gosta de conhaque?
– Nunca o provei!