Jorge do bode
Preparei-me para roubar um bode na feira de Dois Riachos, uns três meses antes do fim do ano. Era por necessidade mesmo. Eu não era um ladrão. Dando um duro miserável todos os dias, não conseguia juntar uns trocados que me dessem condições para comprar uma passagem de ida até São Paulo. Um medo estranho me apertava o peito, mas não desisti. Decidi subtrair aquele bode, custasse o que custasse, acontecesse o que acontecesse. Escolhi o pobrezinho do velho Jorge porque era exatamente ele que comprava para vender na feira gordos animais.
-Seu Jorge, tem muito bode pra feira desta semana?
-Um punhado bom.
-Os bichos tão gordos?
-No meio deles têm uns três capados que tão pocando de gordos. Esses eu vou vender logo. O senhor anda atrás de comprar um, seu Argeu?
-Quem me dera. Não tenho dinheiro pra nada.
-E por que tanta pergunta?
-Deu vontade de saber.
-E o que é que você quer saber mais?
Da terça para a quarta-feira não consegui dormir. Quando o sono chegava, apanhavam-me terríveis pesadelos e eu pulava da cama. Via bodes ao meu redor subindo na grade da cama, mordendo os dedos dos pés, puxando o lençol, berrando alto.
Levantei-me com a madrugada ainda escura. Lavei o rosto, escovei os dentes, engoli um gole de café frio dormido da noite vencida. Quando saí à porta, vi que o pobre velho já havia saído de casa. Ainda o vi carregando com dificuldade um punhado de bodes, todos presos por um emaranhado de cordas emendadas.
Esperei o sol nascer. Dia quente de verão e logo cedinho tudo já ficava claro. Saí tremendo de medo por dentro e disfarçando-o por fora. Precisava daquele bode. Não podia ter pena do velho, senão os meus planos iriam ao beleléu. Fui. Pisava, não na estrada de terra batida, mas no ar. O vento nordeste era quem me empurrava. Quando já estava a uns cinqüenta metros da feira, já ouvindo bem o burburinho das falas de trocas de preços e outras coisas mais, senti o coração disparar.
Não podia mais recuar, o velho ainda não tinha me visto. Cruzei a feira do jerimum, a de farinha de mandioca, a de queijos, a de galinha e assim fui avançando. A feira de bode estava bem sortida. Atravessei-a olhando onde estavam os melhores animais.
Pensei e vi que correr no meio da feira com um bode roubado era trabalho pra gente doida. Como eu iria conseguir? Mudei meus planos. Era melhor comprar fiado um deles e nunca mais pagá-lo. Fui até o velho, comprei o melhor exemplar que ele havia exposto à venda e saí dali sorridente.
-E esse bode, moço, vende ele?
-Comprei agorinha do velho Jorge. O senhor vai lá que acha mais dessa qualidade.
-Dou-lhe duzentos e cinqüenta então. Quer?
Não resisti ao lucro do roubo. Disse-lhe que estava feito o negócio. E foi aí que o velho comprador tirou do bolso um punhado de dinheiro em notas de cem e de cinqüenta reais. Meus olhos quase pularam da órbita. Avancei na mão do velho, tomei-lhe o pacote de dinheiro, soltei o bode e fiz finca pé no meio da multidão de feirantes. Eu gritava pega o ladrão, pega o ladrão e com isso o povo que me conhecia abria caminho para meu corpo passar. Lembro-me de que só parei de correr após ter andado entre o Velame e a macambira por uns trinta minutos, quando me estatelei no chão.
Descansei numa pedra preta escondida de todos. Havia conseguido dois mil e novecentos reais. Como voltar? O povo do lugarejo me conhecia bem. Retornar para a casa de minha mãe é que era o grande problema agora.
Passei no mato dois dias. Na manhã de sábado entrei em casa pelos fundos do quintal. Mamãe estava louca, coitada. Já havia emagrecido uns três quilos, não sei como, visto que seu corpo não conhecia gordura há anos. Perdera pedaços dos ossos, quem sabe.
-Meu filho, o que lhe aconteceu?
-Sequestraram-me.
-Valha-me Deus!
-Tranquilize-se, mãe, eu fugi do cativeiro. Enganei aos sequestradores.
Convenci-a de que necessitava viajar urgentemente porque os sequestradores estavam à minha procura. Fui até a casa do velho Jorge, paguei o bode que havia comprado e apanhei um transporte para Maceió. Lá chegando, comprei uma passagem para São Paulo e fiquei bebericando no restaurante da Rodoviária até chegar a noite e poder embarcar. Estava ansioso e feliz.
Às onze horas da noite me dirigi à plataforma de onde sairia o ônibus 35. Meu bolso estava empapuçando de dinheiro. Nunca havia pegado em tanto deles.
Que sorte a minha, achou o azar. Quando pus o primeiro pé no degrau de subida da rampa onde o ônibus estava parado, ouvi um tilintar no ar. Metal! Ah! Algemaram-me e, daquele dia em diante, passei a ser conhecido como Argeu do Bode, apelido que me acompanhou por três anos de prisão e incontáveis outros, perambulando pelas ruas de Dois Riachos, ouvindo o que nunca imaginei que pudesse ouvir algum dia. Não como bode há anos. Quando vejo um animal à minha frente, fecho os olhos. Seu Jorge, toda vez que me avista, pergunta: Tenho uns bichos gordos, não quer comprar um? Faço de conta que nada ouço. Dou-me por vencido, até nas orações diárias que faço para ver se, quando morrer, o bode chifrudo dos infernos não me encontre. Meu Deus, como é ruim pegar no dinheiro alheio! Por que eu não me contentei apenas com aquele bode?