O Sorteio
"Parabéns, Sra. Maria de Lourdes Ribeiro, você foi uma das ganhadoras da promoção 'Margarina Sorriso® me leva para um cruzeiro'. Em breve, você receberá as passagens e as instruções sobre como proceder."
Com a carta chacoalhando entre os dedos, Maria de Lourdes ria, chorava, dava saltinhos de emoção.
— O que é essa gritaria aí no corredor? A síndica perguntou, braços cruzados, enquanto descia a escada.
— Eu ganhei, Dona Firmina, vou fazer um cruzeiro pro Caribe! Maria de Lourdes respondeu com os olhos marejados. Este havia sido um dos sonhos de sua vida. Desde que havia se casado, isto aos dezesseis anos, foram poucas as vezes que ela havia deixado a cidade. O marido era um homem muito ocupado; nas férias, o destino era o litoral. Uma vez, estiveram em São Paulo, para o enterro do cunhado, outra, no Rio de Janeiro, para o réveillon, e só.
O marido se aposentou e, um ano depois, morreu de ataque cardíaco. A pensãozinha não deixava faltar nada, mas também não permitia luxos. Boa parte se esvaía na farmácia com os caríssimos remédios para pressão alta que Maria de Lourdes tinha de tomar, esta era a verdade. Mas jamais sobraria um tostão para as viagens dos sonhos — ir para a Europa ou um cruzeiro pelas Bahamas.
Então surgiu aquela promoção. Maria de Lourdes recortou os códigos de barras duma centena de potes de margarina e arriscou a sorte. Mas não contava muito com isto, nos bingos com as amigas, só tinha prejuízo, enquanto algumas delas já haviam abocanhado alguns milhares de reais.
Aquela carta era o sinal duma mudança, um marco, pela primeira vez, Maria de Lourdes ganhava algo. Seu coração palpitava.
— Filha, estou indo para o Caribe, ela disse ao telefone.
— Que legal, mãe! Quando será isto?
— Ainda não sei, mas acho que em breve. Posso levar uma acompanhante.
— Já pensou em alguém? A filha perguntou.
— Na minha filhota, é claro! Maria de Lourdes respondeu.
— Ih, mãe, as coisas estão corridas lá na empresa. Acho que não vou poder tirar férias pelos próximos seis meses.
Mas, mesmo assim, a filha ajudou Maria de Lourdes com os preparativos. Compraram uma mala enorme e alguns vestidos de veraneio.
— Vai que você conhece um velhão milionário, a filha dizia.
— Que isto! Seu pai é o único, Maria de Lourdes retrucava, com um sorrisinho acanhado.
Isto não impediu que Maria tingisse os cabelos dum ruivo fogoso e passasse uma tarde num spa.
— Um pouco fora do orçamento, mas uma extravagância, nesta ocasião, não vai fazer mal, ela dizia para si.
Toda manhã, Maria de Lourdes acordava cedo e se sentava à janela, espreitando a chegada do carteiro. Assim que o via contornando a esquina, ela vestia o penoir e corria para baixo.
— Bom dia, Seu Vieira... — os olhinhos ansiosos o fitavam.
— Sinto muito, Dona Maria. Não tem nada pra senhora.
— Não tem problema, ela mentia, para depois retornar a seu apartamento e continuar os preparativos, selecionando as calçolas mais novas, decidindo quais sapatos levar, maquilando-se diante do espelho e treinando alguns passos de valsa para dançar no salão do transatlântico.
Dentre as amigas, já havia convidado meia dúzia como acompanhante, aliás tal convite havia se tornado fonte de ameaças — a qualquer contrariedade ou pequeno desentendimento, Maria de Lourdes se exaltava: “olha que não vou levar você comigo!”;
Algumas das amigas começaram a especular, quando dois meses haviam passado e nada das passagens terem chegado, que este sorteio não era nada mais que um delírio de Maria de Lourdes, talvez os primeiros sinais de insanidade.
— Este concurso não existe! Uma delas a desafiou, numa destas discussões.
— Existe sim! Maria de Lourdes se defendeu, arrancando a carta do bolso, já amassada e esfarelada, e a sacudiu diante do olhar invejoso da amiga.
— Mas já são dois meses, Maria! Acho que eles se esqueceram de você.
No entanto, Maria de Lourdes nem cogitava esta possibilidade. “Os trâmites são mesmo lentos para este tipo de coisas”, ela se reconfortava. Na mala, mal cabia um fio de cabelo e ela precisou da ajuda dum vizinho para conseguir fechá-la. Nos próximos dias, com certeza, as passagens chegariam, então seria um “cala a boca” para as amigas, Maria de Lourdes torcia.
Os meses se sucederam e nada. Maria de Lourdes mal saía de casa, com medo de que o carteiro viesse e não a encontrasse, não comia por causa da ansiedade, não conseguia dormir; imaginava-se no convés, vendo o risco do horizonte adiante engolindo um sol vermelho, a brisa do mar roçando seus cabelos — “preciso retocar a tintura”, ela pensava, pois o branco novamente já aparecia — e o balanço constante e nauseante do barco.
— Amanhã, amanhã, ela resmungava, lutando para conseguir adormecer, roendo as unhas, rangendo os dentes, chorando de raiva.
Numa tarde de segunda, a síndica e dois homens invadiram o apartamento de Maria de Lourdes. Ela estava caída na sala, magérrima, desacordada, encharcada na própria urina.
Após um fim-de-semana sem conseguir falar com a mãe, a filha de Maria de Lourdes ligou para a síndica e para uma clínica de repouso. Internaria sua mãe, antes que ela morresse sozinha naquele apartamento.
Na ambulância, Maria de Lourdes recobrou a consciência.
— Não, eu preciso voltar para casa! O carteiro vai trazer minhas passagens para um cruzeiro! Vou para o Caribe... Levem-me de volta... Levem-me de volta...
Realmente, o carteiro surgiu na manhã seguinte e depositou uma carta na caixa de correio de Maria de Lourdes.
"Sra. Maria de Lourdes Ribeiro,
Gostaríamos de nos escusar, por meio desta, por um equívoco ocorrido em nossos bancos de dados. Seu nome erroneamente foi apontado como um dos sorteados para a promoção “Margarina Sorriso® me leva para um cruzeiro”. Como forma de compensação, enviaremos para seu endereço uma caixa com nossos produtos, incluindo o lançamento Margarina Sorriso sabor queijo cheddar.
Esperamos que nos desculpe por tal equívoco."