Reciclagem

O Homem catava latinhas, que foi o emprego que o país lhe deu. Não foi por falta de tentativa, mas pelo menos tinha como se virar. Se a vida parecia-lhe injusta, observava os homens engravatados dentro de seus carros importados, com um ar azedo e repassando a agenda mentalmente, num processo automático. Convencia-se, então, que era mais feliz.

Com seu ofício, além de ajudar a manter a cidade limpa, passeava por diferentes cantos e podia curtir a natureza quando era dia de trabalhar no parque. Às vezes encontrava coisas engraçadas no lixo e levava para seus três filhos pequenos. A Mulher era lavadeira e passadeira, muito pontual e honesta. As crianças cresceriam para ser gente de bem.

Não costumo andar pela cidade à noite, porque segurança agora vale mais que liberdade, mas nesse dia estava numa ruela escura, já estourando as 8 da noite. O Homem vinha carregado com um enorme saco plástico cheio de latinhas vazias de refrigerante às costas. O esforço de tudo aquilo numa subida me fez suar.

A rua parecia não terminar, a subida era dolorida e, depois de uns minutos de companhia silenciosa, comecei a temer o Homem que se esforçava até tarde. Não havia sequer um cachorro na rua, além de nós.

Criei cenas em que ele largava a sacola e, de dentro dela, sacava uma arma, me roubava tudo e atirava em qualquer parte do meu corpo que não fosse fatal, só para ter certeza de que eu não gritaria ou correria atrás dele num ímpeto de coragem fraca. Isso se ele não fosse tão ruim. Se fosse, atiraria na cabeça antes de pegar o que era meu. Até me imaginei proferindo um discurso inchado sobre desigualdade social, a culpa do governo e afetando ênfase no fato de que eu não tinha culpa da situação do país, quando me entrevistassem após sobreviver.

Quando eu já estava embebido nos pensamentos a ponto de caminhar maquinalmente e me aproximar cada vez mais do Homem sem querer, as únicas duas pessoas naquela rua resolveram, sem qualquer acordo prévio, fazer música.

No mesmo segundo em que minha moeda que rodopiava no ar ao meu comando caiu no chão, a sacola do Homem estourou e centenas de latinhas rolaram o mais depressa que puderam, como se tivessem declarado guerra à reciclagem armando um motim repentino.

O Homem apenas observava, exausto. Achei que ele fosse chorar.

Dei às costas à criatura, impulsionado pela memória de que um conhecido morava ali perto. Ele soltou um suspiro fumacento, como se já esperasse tal atitude.

Voltei em cinco minutos com um novo saco preto tão grande quanto o outro que arrebentou, e vi pelos olhos do Catador que seu medo era maior que o meu.

Só aquela coruja sabe quanto tempo passamos estudando o rosto um do outro. Não sei o que ele pensava, mas eu pensei que era triste demais um ser humano temer o outro sem ao menos conhecê-lo. Aí pensei que, quando um bicho teme o outro, geralmente ataca para se defender. Voltei a sentir medo.

Demos um passo para trás ao mesmo tempo. Ele já tinha aceitado o saco preto. O Homem alcançou um pedaço de pau. Eu, muito cansado da subida, resolvi não correr. Iria apenas esperar ser atacado ou sair ileso.

Dei os dez passos mais trêmulos de que posso me lembrar e tomei coragem de olhar pra trás. O Homem havia passado o pedaço de pau por entre as abas da sacola, de modo que fizesse de seu achado um apoio para carregar tudo o que havia no saco. Lembrava vagamente uma cruz.

Fiquei envergonhado de meus pensamentos em relação àquele Homem, quando uma voz quebrou todo o silêncio escuro de nossa curta convivência.

--- Moço! - chamou uma voz calma e rouca.

Ouvi o barulho do saco encostando os brincos no chão. Senti a gota mais molhada escorrer pela nuca, mas me virei mesmo assim.

--- Sua moeda.

E estendeu-me a mão.

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