PNEU FURADO
A avenida tinha tres faixas de rolamento em cada mão. Era tomada em praticamente toda extensão por restaurantes, lanchonetes e casas de “shows”. Por sobre ela, num trecho, o metrô passava com toda tecnologia dos tempos modernos.
A noite era de festa, alegria, um sábado frio, mas ideal para os prazeres da mocidade.
No sentido bairro-centro, um reluzente carro importado, dirigido por Sônia, uma senhora alta, elegante, loira, com aproximadamente 35 anos, inesperadamente parou. Duas rodas sobre a calçada. Um pneu estava furado.
Ela sinalizou para os que passavam, a pé ou motorizados, mas o povo ficou indiferente ao problema dessa madame; comportamento esperado dos que habitam as grandes cidades. Isso foi motivo de desespero para ela, afinal passava das 23 horas, e o medo tomou conta do seu semblante.
Já sentindo-se desamparada, pois nem ao menos o celular funcionou, e com o olhar perdido no vazio, não percebeu que alguém aproximava-se.
O homem estava mal vestido, tinha um paletó sujo e esgarçado sobre uma surrada camisa de flanela. A calça era jeans e seu calçado - um velho par de tênis- estava furado na ponta do pé direito.
Ele chegou para surpresa dela, gentil e educado, comunicando - se em perfeito português. Disse chamar - se Fernando e ofereceu - se para resolver o problema.
Superada a desconfiança da fina mulher, esse quase indigente começou a trocar o pneu. Para quebrar o gelo ele respondeu as indagações dela e contou, entre o apertar de um e outro parafuso, que formou-se em administração de empresas ainda jovem. Foi aluno exemplar. Afirmou também que falava inglês fluentemente. Pasmem!
Fernando relatou que fez carreira numa empresa multinacional, que conseguiu um ótimo padrão de vida e constituiu família, sendo pai de duas filhas. Porem um dia, a tal reengenharia empresarial acabou por tirar - lhe o emprego ; para os seus 40 anos completos, já não havia cargo.
Ele tentou por dois anos recolocar - se. Seu currículo era excelente, porém a “idade” impediu - o de conseguir qualquer função que lhe rendesse ao menos a metade do que ganhava anteriormente. Nesse período, suas reservas esvaíram-se pois tentou manter a qualidade de vida familiar.
Os amigos, um a um, desapareceram. Aquele que era bem íntimo da família, quase um irmão, permaneceu mais tempo por perto. E esse acabou por tomar - lhe a esposa, afinal ela havia encontrado uma nova paixão e a boa conta bancária, que tanto precisava e gostava. Era muito afeita à vida de aparências.
A outrora perfeita esposa não esqueceu de colocar as filhas contra o já derrotado quarentão desempregado. Tratou de justificar seu novo relacionamento, enaltecendo as qualidades do agora novo pai das crianças.
Então Fernando saiu do que antes era seu lar, arrasado. Buscou forças no que lhe restava de fé interior. Tentou reerguer - se. Conseguiu um emprego modesto e morou numa kichenette mas foram poucos meses.
Ele não possuía mais auto estima. Passou a viver de pequenos e escassos serviços temporários. Seu endereço seguinte foi um barraco em uma grande favela.Nesse local, por um mal entendido, marginais o ameaçaram de morte e como consequência, teve que fugir para sobreviver.
O fato é que, no momento, sua casa era ali mesmo, debaixo do metrô que passava. Ele dormia sobre os papelões, coberto por um amontoado de retalhos e tinha para guardar seus pertences um velho caixote de maçãs.
Finalmente, pneu trocado. Carro em ordem. Agora a estupefata e emocionada senhora tinha um novo objetivo na vida que era ajudar esse pobre morador de rua a tornar - se cidadão novamente.
Sônia era oriunda de família bem abastada e não teve dificuldades para formar- se médica. Havia feito uma bela carreira. Não tinha filho e já estava viúva há alguns anos.
Condoída da situação daquele gentil cavalheiro imbuiu -se do desejo de ajudá - lo. Na segunda feira, bem cedo, conforme prometera, veio buscar o então novo amigo para leva-lo á sua clinica particular. Lá, o homem pôde tomar um banho decente, barbear - se, ganhar roupas usadas, mas em bom estado, limpas. E teve a oportunidade de passar por vários exames médicos.
Restabelecido, prontificou-se a trabalhar como auxiliar administrativo da doutora. Ganhou um quartinho nos fundos da ampla clínica, onde voltou a ter uma vida normal. O tempo, por sua vez, encarregou-se de intensificar a amizade entre eles.
Dada a oportunidade, o agora novo senhor, não só tornou-se um excelente administrador dos negócios da bela médica como também conseguiu tomar conta do seu grande coração.
Recuperou o respeito por si mesmo e reconquistou os filhos do primeiro casamento, pois afinal, sempre foi um ser íntegro e merecedor de toda a consideração dos que o cercavam.
Passaram-se vários anos daquele feliz conserto de pneu, onde preponderou a solidariedade humana. Noite em que dissiparam-se inseguranças, desconfianças e preconceitos.
Hoje, a Sônia do carro importado e o outrora gentil mendigo, são marido e mulher, têm um filho e dedicam um dia por semana, religiosamente, a procurar pessoas debaixo de pontes e viadutos, na esperança de verem repetir, o que foi para eles, o milagre do amor.