Ferrugem
Ir ao supermercado não era sua tarefa favorita, mas não havia outra pessoa que pudesse fazê-la em seu lugar. Ela era bastante exigente em relação ao que comia e, por isso, naquele dia estava tão concentrada, que não reparou em quem estava no mesmo corredor de laticínios.
--- Nossa! Agora você faz compras sozinha.
A vida é mesmo uma coisa muito engraçada.
--- Há 8 anos atrás eu ainda morava com a minha mãe.
E começaram uma discussão sobre as trivialidades da vida. Ela, no entanto, não conseguia prestar atenção e viajava nas próprias lembranças.
Há anos atrás aquele rapaz havia sido seu "namoradinho" de adolescência e ela se esforçava para lembrar por que havia terminado o casinho inocente. Imaginava mil cenas e recordava tantas outras.
Ele sabia que ela estava se relacionando seriamente com um rapaz que ele não conhecia, porque havia visto o casal algumas vezes no barzinho que freqüentava. Ela, porém, não sabia uma página da história dele depois que resolveu fechar o livro há oito anos atrás.
Sentia-se completamente idiota por ter perdido o rastro do menino que agora sustentava uma espessa barba cobre e os mesmos olhos enormes e amendoados.
Mergulhou nos olhos e começou a sentir um calor perdido em direções confusas bater-se pelas paredes de seu corpo, e sentiu até mesmo uma gota envergonhada de suor escorrer pela nuca. As bochechas resolveram corar sem permissão, como se estivessem esperando aquela febre há anos. Finalmente ela tinha entendido.
As palavras do rapaz eram mero balbuciar, e ela não percebeu quantos sinais estava enviando, por ter perdido o controle do próprio corpo.
Mas ele captou e, num ímpeto velho, de anos de espera, sentiu-se à vontade para beijar a moça com toda saudade que nem sabia que sentia.
O momento não durou uma eternidade, mas ele prolongou o máximo que pôde. Ela já pensava se haveria chance de irem mais longe, pois nunca soube como aquele rapaz tocava um corpo de mulher. Naquela época eram apenas duas crianças com vontade de crescer, mas sem coragem.
Quando finalmente se separaram, ela tinha o gosto de ferrugem na boca, característico do primeiro beijo de romances antigos.
--- Não acabou, não é? Não tinha acabado ainda. Não tem que acabar...
A aflição do rapaz provocou um sorriso na moça, que mal sentia as pernas dentro da calça apertada.
--- Deixe que eu te procuro. Você mora no mesmo lugar?
--- Sim, disse ele, num tom de esperança quente e ansiosa.
Ela nunca apareceu, pois certas pessoas têm essa missão de serem o toque de mistério na rotina de nossas vidas e, acima de tudo, ela não queria que o momento perdesse o encanto, pois queria vivê-lo novamente. Coisas enferrujadas são sempre mais bonitas.
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