Pânico na radiodifusora TicSom
Há muito tempo atrás, em uma pequena e pacata cidade do interior paulista havia uma estação de rádio, cujo nome era Radio difusora TICSOM FM 97,3 MHz.
Era de acordo com o tamanho da cidade, com poucos funcionários e uma programação adequada ao lugar, ou seja, bastante limitada.
Mas dizer poucos funcionários seria até um exagero, pois além do proprietário, que residia na capital e, portanto, bem longe da cidadezinha, trabalhavam lá apenas uma faxineira, um vigia e um único radialista. A programação normalmente era automática, executada por um programa de computador, sem interferência humana. O radialista, por assim dizer, tinha como função apenas ligar e desligar os equipamentos e verificar se os mesmos estavam funcionando sem problemas. Era um trabalho tranqüilo, sem complicações ou muitas exigências.
Como todos os dias, o rapaz abria a estação, verificava os equipamentos, selecionava a programação inicial e, após isso, fumava um cigarrinho de “Carnaval” e puxava um ronco, especialmente após tanto e tão extenuante labor. Seu turno se encerrava com a chegada da faxineira, isso quando ela ia, pois nada havia para limpar.
Com o tempo, essa mesma faxineira se limitava a ir ao local apenas duas vezes ao mês, até por sugestão do radialista.
O vigia saía de sua casa e ia dormir o restante da noite na pequena guarita à porta da estação. Nada havia para se preocupar, pois como dissemos anteriormente, esta era uma pacata cidade de interior, cuja maior parte da população se encontrava na área rural, sendo composta por agricultores e criadores de gado e galinhas. Era uma cidade com pouco mais de mil habitantes, um verdadeiro vilarejo.
E aconteceu que o radialista, como todo ser humano, também havia nascido um dia e, portanto, também fazia aniversário.
E o rapaz resolveu, numa determinada época, mais especificamente no mês de Outubro, comemorar esta data. Como ele morava em um quartinho, numa pensão da cidade, e por isso não dispunha nem dos meios nem do local adequado para tal evento, decidiu improvisar.
A estação Rádio difusora possuía um quintal que, embora também pequeno, já era muito mais que seu singelo quartinho. Aliás, era neste quintal que este sagaz rapaz costumava lavar suas roupas, pendurá-las num varalzinho e, às vezes, preparar sua comida, pois lá, curiosamente, existia uma churrasqueira e um tanquinho de lavar roupas. Este tanque servia, às vezes, nos dias de calor intenso, como uma reduzida, porém eficiente piscina para o astuto radialista.
Era uma cidade localizada numa região onde o sol era inclemente na maior parte do ano. Seus habitantes apelidavam-na de “Deserto”, pois frio e chuva eram raridade, e quando entrava nesta estação do ano, o rapaz costumava utilizar o interior da rádio para secar suas roupas, inclusive por que ninguém costumava por lá aparecer, apenas ele mesmo. O proprietário nunca ia, sendo que sua comunicação geralmente se dava por telefone ou e-mail, e mesmo isso era uma raridade, de modo que o radialista se sentia como se fosse o “dono da casa”.
E chegou o mês em que nosso herói completava anos.
Desde o início do mês, ele começou a fazer os preparativos, afinal, não era sempre que ele comemorava quarenta verões. Era uma data especial para ele, pois passara estes 40 anos inteiros naquele lugarejo, o que por si só já era algo inusitado, pois a maioria de seus amigos há muito já haviam abandonado o local em busca das vantagens e oportunidades da capital.
Confeccionou convites utilizando os equipamentos da própria rádio, ou seja, o computador e uma velha impressora com tinta preta, do tipo “matricial”, mas que para ele já era uma grande coisa.
Decorou o quintal e a própria radio difusora, tanto no interior quanto no exterior. Após isto, distribuiu os convites para praticamente a cidade inteira, alardeando que seria um evento de grandes e inusitadas proporções. E, numa radiante manhã de Domingo, os convidados foram chegando, cada qual com seu meio de transporte predileto, alguns poucos em carros velhíssimos, outros em cavalos ou carroças, mas a grande maioria, a pé mesmo.
E foram se apinhocando no minúsculo quintal e, também, dentro da estação e até na entrada da mesma. Um de seus amigos mais chegados já foi se espremer ao lado da churrasqueira e iniciar os preparativos do que seria o grande almoço, constituído de uma vasta seleção de carnes de caça, mais propriamente, uma passarinhada, a qual era a preferência geral da população.
O cardápio ia de simples pardais até requintados colibris e, inclusive, alguns patos selvagens, maritacas, tucanos, periquitos, rolinhas, tico-ticos, sabiás, curiós e os mais apreciados dentre todos: papagaios. A bebida era a famosa aguardente produzida na região, a renomada Caninha São Judas Tadeu, a qual era destilada por um de seus melhores amigos, maior distribuidor de abobrinhas da região e, curiosamente, também o pastor da cidade, conhecido como Dos Reis.
Dos Reis era um pastor evangélico, dotado de um forte senso de justiça e uma moral incontestável, amealhada ao longo dos anos. Não era natural do vilarejo, havia vindo de outra cidade, onde, segundo as más línguas e a inveja de pessoas obviamente a serviço do Maligno, exercera outra profissão, esta de caráter duvidoso, antes de se converter ao chamado do Altíssimo. Mas estes eram detalhes que apenas poucos conheciam, dentre eles nosso exemplar radialista.
A festa estava no seu ápice, quando, inesperadamente, o telefone tocou.
E tocou, e tocou e tocou.
Mas ninguém estava sóbrio o suficiente para ouvi-lo, e os que ainda não estavam tão bêbados, não deram a mínima, pensando inclusive se tratar de complemento das músicas escolhidas, todas a dedo, por nosso vetusto aniversariante.
Pois nosso radialista, enjoado de tanto ouvir pagode, o qual era o carro-chefe da programação da emissora, havia resolvido conceder uma folga a seus ouvidos e, sem titubear, modificara a seleção musical de acordo com seu gosto, que, em sua modesta opinião, era muito mais refinado de que o de seu patrão, um bispo católico.
E, mais uma vez, ou melhor – vezes - o telefone voltou a tocar insistentemente.
Mas novamente ninguém se importou, exceto o radialista que, já com o saco (e a cara) cheio com tão insuportável barulho, arrancou o aparelho da parede e o jogou no fundo de uma gaveta. Aproveitou o momento para trocar o CD, colocando uma banda de rock muito conhecida e apreciada na região, “Os Tantãs” e, após aumentar o volume, se serviu de mais uma generosa dose da insubstituível Caninha São Judas Tadeu, e retornou ao quintal para degustar uma deliciosa asinha de papagaio assado. Aliás, papagaio na brasa era uma das muitas especialidades de seu amigo Dos Reis.
Mas o que nosso imprudente radialista nem imaginava, era que o telefonema provinha de seu patrão, o Bispo Paulo Di Trácios Gigantus, o qual estava ligando para avisá-lo estar a caminho da Radio difusora na companhia de um amigo, o qual desejava estabelecer uma parceria com o Bispo, com o intuito de modernizar e reformar a emissora.
Este amigo do Bispo era um grande e conceituado empresário do litoral paulista, proprietário de casas noturnas e restaurantes de grande renome, e estava querendo ampliar seus negócios, e uma emissora de rádio ser-lhe-ia muito útil na divulgação de seus estabelecimentos. Seu nome era Caio Querubim dos Anjos, e era reconhecido por ser um empresário deveras severo, porém extremamente honesto e confiável.
Neste ínterim, a festança estava em pleno auge, com todos os convivas completamente embriagados, a música rolando solta e em alto e bom som, e a churrasqueira comandada pelo pastor Dos Reis mandando ver em seu mais prestigiado quitute, o já mencionado Papagaio na Brasa.
E foi neste momento que o Bispo e seu amigo chegaram ao local.
Ambos foram tomados de uma enorme surpresa e estupefação ao se depararem com a dantesca cena à sua frente: dezenas de pessoas, totalmente alcoolizadas, algumas descaradamente consumindo entorpecentes à vista de todos, dançando e gritando, exatamente na porta da Radio difusora.
Em seu interior a situação era ainda pior, com casais se agarrando despudoradamente logo na entrada, pessoas vomitando no chão, um velho dormindo esparramado no único sofá da minúscula recepção, e ainda por cima abraçado a uma garrafa semi-vazia da caninha São Judas Tadeu e, no quintal, o povo todo dançando, berrando e se fartando de aguardente e papagaio assado. O pastor Dos Reis, também levemente embriagado, apenas de cuecas e camiseta, se encontrava em cima do tanque de lavar roupas, pregando a Palavra de Deus em altos brados, embora ninguém ali desse a mínima atenção à ele e, lógico, nosso alegre radialista saracoteando ao som de um rock um tanto quanto pesado, mesmo para a ocasião, de uma banda obscura, cujo estranho, comprido e bizarro nome era “Walking on the Shadows of the Valley of Death”.
E a programação original da emissora há muita tinha se perdido no meio de tanta esbórnia.
E foi justamente este o primeiro sinal percebido de que algo muito errado estava acontecendo na Radio difusora, que tanto o Bispo quanto seu amigo tiveram ao chegarem à cidade. Não era, em absoluto, a programação normal da Rádio, dissera um Bispo totalmente abismado a seu amigo.
Sem pestanejar, o bispo Paulo, num rompante de fúria indizível, como se fosse um Cristo moderno num Templo de Comunicações, ao expulsar os vendilhões do mesmo, desligou da tomada todo o equipamento, pondo fim à trilha sonora do evento. Porém esta foi uma medida que pouco ou nenhum efeito surtiu na galera, tal era o estado alcoólico em que se encontravam os participantes de tão sinistra orgia. Então, sem titubear, o Bispo iniciou o que poderia ser qualificado como um autêntico expurgo generalizado. Com dois ou três berros bem dados, começou a expulsar aquele povo todo de sua emissora. E os convidados foram saindo, aos grupos, sem nada entender e sem sequer imaginar quem fosse aquele indivíduo que ousava acabar com sua alegre e descontraída festinha.
Quando quase todos os participantes já haviam sido retirados praticamente a tapas e pontapés, pelo indignado Bispo, este se deparou com seu funcionário tomando uma “ducha” no tanque de lavar roupas, trajado apenas com uma linda cueca roxa com bolinhas amarelas.
A surpresa e o horror de nosso pobre radialista foi tamanha, que o coitado quase se afogou no tanque, pois, não sabendo onde se enfiar, tentou escapulir pelo ralo do tanque, coisa que, obviamente, não deu muito certo. Neste momento, já não havia mais ninguém na festa, inclusive o pastor Dos Reis que, ao se deparar com o patrão de seu amigo, optou por uma “saída à francesa” e sumiu porta afora, mas não sem antes apanhar umas duas ou três garrafas da preciosa caninha São Judas Tadeu e uma baciada do delicioso Papagaio na Brasa.
O Sr. Caio Querubim dos Anjos mal podia acreditar na cena que estava à sua frente. Jamais havia, em todos os seus anos de vida e na direção de casas noturnas, visto algo assim. Inclusive pensou com seus botões: “Como radialista eu não sei, mas que este rapaz é um excelente animador de festas, lá isso ele é!”.
O Bispo Paulo, completamente arroxeado, com as veias do pescoço e da testa saltando grotescamente, já estava quase afônico de tanto urrar com seu inconseqüente funcionário. E este só conseguia pensar numa coisa: que Deus o fulminasse com um raio ou, ainda, que o chão se abrisse sob seus pés.
Com alguma dificuldade, o Sr. Caio conseguiu acalmar os ânimos do Bispo, o qual estava a ponto de esganar, com requintes de crueldade, seu estarrecido funcionário.
O Bispo despediu o pobre-diabo, sem direito a nada, nem mesmo a retirar suas roupas, já secas, que balançavam num varal improvisado justamente acima dos caríssimos equipamentos de sua emissora.
Mas esta curiosa história, inspirada em fatos reais, teve um inusitado porém final feliz: O Sr. Caio Querubim dos Anjos fechou o contrato com o Bispo Paulo, estabelecendo a tão desejada parceria e, contra todas as possibilidades, nosso querido amigo radialista foi contratado por ele para promover festas em uma novíssima boate gay no litoral paulista.
E o restante do povoado continuou sua vidinha cotidiana, sendo que o pastor Dos Reis encerrou sua carreira evangélica e dedicou-se a um novo empreendimento, uma churrascaria especializada em aves de caça e também promotora de sua inesquecível Caninha São Judas Tadeu.
Esta festa ficou conhecidíssima na cidade, inclusive a data foi convertida em feriado municipal, sendo comemorada e relembrada todo o ano, com a óbvia participação da Cantina Pia Pinto.
A Radio difusora TICSOM recebeu novos equipamentos, todos de última geração, foram contratados novos funcionários e sua sede foi transferida para um prédio especialmente construído para esta finalidade, porém sem quintal, tanque de lavar roupas ou churrasqueiras.