A jovem do Onibus
Ela estava chorando. Eu podia ver através do reflexo do vidro da janela do ônibus. Eu podia ver as lagrimas que lentamente rolavam para fora de seus grandes olhos claros e se derramavam em sua blusa vermelha. Ela olhava a noite escura pela janela, mas seus olhos tinham aquela nevoa, aquela nebulosidade, aquele olhar distante de alguém cuja mente estava longe dali. Eu não sábia o que falar ou o que fazer. Uma estranha chorando ao meu lado, silenciosamente, como se não quisesse perturbar ninguém. Devia eu respeita-la e deixa-la em paz? Devia eu perguntar o que havia de errado?
E se ela respondesse: “Não é da sua conta!”, pensando que eu fosse uma daquelas pessoas que fazem à pergunta e depois não sabem o que fazer com a resposta, tendo então que soltar palavras como babugem que escorre pelo canto da boca em comentários vagos do tipo “...é a vida...”, “tudo vai dar certo...”, “confie em Deus...”. Por outro lado, e se ela não me dissesse “Não é da sua conta!”. E se ela realmente me dissesse o que a estava incomodando. Será que eu realmente quero uma mulher estranha chorando me contando seus problemas? Será que os meus já não são mais do que suficientes? E se ela pensar que estou perguntando na intenção de flertar com ela, que eu sou do tipo que tira vantagens da vulnerabilidade de uma mulher entristecida, fragilizada?
Olhei para ela disfarçadamente, de relance. Ela devia ter uns vinte e tantos anos, menos de trinta com certeza. A maquiagem dos olhos escorria por causa das lagrimas, fazia-a lembrar um racum. Esse era o tipo de desculpa que eu precisava. Ofereci a ela um guardanapo de papel. Ela pareceu um pouco surpresa, mas aceitou, limpou o rosto, soou o nariz e colocou o papel dentro de uma sacolinha plástica. Me olhou de novo, não disse uma palavra, um obrigado, mesmo assim senti gratidão, depois vi que seus olhos tinham tornado a perder-se entre nevoa e escuridão.
Seu silencio havia me constrangido um pouco. Talvez fosse falsa modéstia minha esperar que todo mundo agradece-se do repetitivo modo autômato, com velho e caduco “Obrigado”, palavra esta estranha para expressar agradecimento por trazer tamanha semelhança semântica com a palavra obrigação. Ela não era obrigada a dizer obrigado, e não disse, e mesmo assim senti sua gratidão. Talvez o segredo da vida esteja no sentir e não no falar, talvez todos os dias inúmeras pessoas tentem em vão dizer o que sentem por dentro, mas falham por faltar-lhes palavras, por ainda não existir meios adequados de comunicar aquilo que se sente, talvez ela saiba disso e por isso não disse nada, preferiu apenas me olhar.
Sei que no fundo uma parte de mim esperava que ela começasse a me contar a triste historia de sua vida, depois que tinha quebrado o gelo com o guardanapo... Foi então que ela fechou os olhos e atirou a cabeça para trás e recostou-se no banco como se imediatamente fosse adormecer. Senti-me rejeitado. Olhava pela janela, mas só havia escuridão. Sua presença não me deixava mergulhar em nenhuma névoa que levasse meus pensamentos para longe dali, sua presença era forte e enigmática. Vez ou outra avistava ao longe uma casa meio ao vasto campo, com sua luz amarelada a reluzir. Como será morar ali, naquele silencio, o silencio faz tantas perguntas, não são como as perguntas do barulho de uma cidade grande, não são perguntas rasas, elas são agudas, tenebrosas, o silencio esmiúça nosso intimo, por isso ele é tão assustador, quem tem medo de si detesta ficar em silencio. Quem gosta do ópio detesta o silencio.
Discretamente virei meu rosto para observar a jovem mulher novamente. Estava imóvel, quieta, como se fosse uma boneca de porcelana, mas uma boneca que vertia grandes lagrimas que rolavam por seu rosto. Ela engoliu a saliva. Foi um movimento rápido, mas pude perceber os músculos movimentando-se sob a pele. Fingi coçar a nuca com uma das mãos – só para ter uma desculpa plausível caso ela abri-se os olhos e me pegasse observando-a.
Qual seria o motivo das lagrimas? O fim de um relacionamento? A perda de um parente? Ou talvez ela tenha perdido o emprego? Ela era jovem. Ela deveria estar se divertindo com amigos ou indo a um encontro amoroso com algum jovem rapaz; ela não deveria estar viajando sozinha, chorando.
Virei o rosto para a janela. Aquilo não era problema meu, ela tinha deixado isso claro com seu silencio. Olhei no relógio. Deveríamos chegar em nosso destino em uma hora. Bom. Fiz de minha blusa travesseiro e recostei a cabeça entre a poltrona e a janela. Olhava para fora, parecíamos passar por uma pequena cidade, dessas de beira de estrada. Fechei os olhos e decidi cochilar. Estava a ponto de dormir quando a ouviu puxar o ar com força para impedir que ranho que lhe escorre-se do nariz. Aparentemente precisava de mais um lenço de papel. Eu tinha. Deveria eu oferece-lo a ela? Não seria estranho você estar sentado ao lado de um desconhecido que fica lhe estendendo papel sucessivas vezes? Talvez seja melhor que fingir que durmo? A jovem das lagrimas resolveu meu dilema limpando o nariz na manga da blusa. Fechei os olhos e fingi dormir. Ela obviamente não queria minha ajuda, pois preferiu sujar a própria blusa a falar comigo!
Inclinei a poltrona um pouco mais para trás, estiquei as pernas, fechei os olhos e adormeci. Quando acordei, estávamos chegando à estação. Percebi que a poltrona ao lado estava vazia. A bela jovem das lagrimas se fora. Peguei minha jaqueta, minha maleta e caminhei até a saída do ônibus. A noite estava fria e o ar úmido. Atravessei a estação rodoviária em direção a avenida principal. Uma longa fila de táxis esperando por passageiros. Escolhi o meu, e estava a ponto de entrar quando em um relance pude ver a jovem de novo, um pouco antes de entrar em seu táxi. Ela ainda estava chorando.
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Zebedias Volta a publicar no site depois de 2 anos ausente.