Cama e sepultura

Todas as noites Jaime subia a ladeira lá para as tantas da madrugada, abria os dois portões, o grande da entrada e o pequeno do leito de dormir. Quase sempre subia embriagado, camisa aberta de cima a baixo e um copo vazio na mão. Não falava com ninguém na rua, apesar de, àquelas horas, apenas as almas e os vigias passearem.

De manhã cedo, levantava-se, abria o portão menor, lavava a face com a água do primeiro vaso de flores que alcançava e descia a ladeira. Agora de cabeça baixa, camisa fechada e cumprimentando a todos que o encontravam, de menino a homem.

Ele trabalhava nos Correios. Um homem calado ao seu gosto introspectivo – muito introspectivo. Filho único, havia perdido os pais aos dezesseis anos. Daí em diante, não acatado pelos familiares devido ao vício do alcoolismo, passou a dividir o tempo entre o emprego e um velho quarto de dormir alugado, ao lado da estação do trem. Cansado da solidão, mudou-se para o pequeno cômodo do topo da ladeira. Lá dormia bem sobre um fino colchão enroscado atrás da portinhola. Cria que lhe faziam bem as novas companhias. Bebia todos os dias. Nunca se ouvia uma palavra de baixo calão ou alguma resposta atrevida. Bêbado, ficava surdo e mudo; sóbrio, triste e educado.

Na cidadezinha de interior, onde o tempo parece espichar-se e durar bem mais que o normal, Jaime envelheceu. Morreu ainda muito jovem. Acharam-no morto, exatamente onde passou a viver nos últimos anos de sua vida. Se o sol raiasse e o portão pequeno não cantasse exibindo o descaso com a sua lubrificação, nem o grande se abrisse para lhe dar passagem, algo estaria errado.

Era domingo, mês de setembro, e a brisa fria da manhã soprava enjilhada do resto do frio de agosto. A ladeira era a mesminha de sempre, mas as pessoas não o viram descer para se embriagar. Estava ocultado. Estranho!

Alto, alvo, magérrimo, pele enxofrada pelo vício, voz rouca, palavras escassas, olhar tristonho de quem vivia sozinho com o álcool.

O sino da matriz avisava a hora da missa. O coveiro teve que abrir o portão. Jaime não o havia feito e isso era esquisito. Abriu então o portão grande do campo santo e dirigiu-se à primeira sepultura, a dos Carvalho. Um túmulo marmóreo a exibir a fidalguia de centenária família.

No mesmo mármore frio que cobria a sepultura de seus pais, ele estava dormindo o último sono, o que não nos faz mais acordar para a vida. Abraçado a ela, parecia estar abraçado a seus pais. Na face uma expressão de contentamento que escondia o antigo rosto triste. Ainda estava descalço. O jarro de flores estava vazio. Ele havia se acordado antes de morrer e provavelmente, sem alardear, escolhido seu leito de morte, após lavar o rosto, fazer sua última oração.

Os familiares, comovidos, providenciaram o funeral e a cidade lembrou-se de Jaime, sem choro, sem remorso, assim como ele foi enquanto viveu sua silenciosa solidão de vida e de morte.

A história de Jaime eu conto, como se realmente ela houvesse acontecido e eu presenciado. Mas não sei se narro o que sai de mim ou o que inconscientemente me dão. Mas narro com a força da criação que chega a pulsar, impedindo-me de ser como Jaime. Vivo a contar os barulhos e os silêncios que a vida me mostra. A ladeira íngreme eu a conheço desde minha infância; o cemitério é mesmo o de União dos Palmares, esta história é que deixa de ser apenas minha. É uma pena que Jaime esteja morto. Duvido: ele acaba de nascer neste conto, como eu após recente infarto do miocárdio de que fui vitimado há tão poucos dias.