O que passou, volta!
“Meu tempo era tão velho que eu, quando criancinha e chegava no terreiro lá de casa um guerreiro, eu acreditava que ele havia caído do céu. A minha inocência corria os campos atrás das flores pintadas pelas borboletas, beijadas pelos beija-flores, lambidas pelo sol da vida.
Cedinho íamos dormir. O rádio de papai tocava até às seis da noite. Apenas um candeeiro permanecia aceso em cima da parede da sala. Tremeluzia à noite sem poder dormir como a gente.
Nas noites frias de inverno, eu costumava jogar as pernas sob o cobertor de lã numa algazarra sem par. Era a folia do frio. Lá pelos fins da madrugada, ele doía dentro dos ossos de minhas canelas secas. Aí, o galo cantava nem sei pra quem. Acordávamos todos! O seu canto parecia uma ordem para a sincronia do despertar. A partir dessa hora é que a sinfonia compassiva se acendia e ouvíamos os mugidos das vacas, os gritos das galinhas botando ovos, os badalos das cabras pretas boas de leite, os grunhidos dos porcos. Mas o meu coração só se acordava mesmo quando a gonga da sala pipocava seu canto como se sua goela fosse hercúlea e santa; aí, sim, eu ouvia a poesia de minha infância não querer mais ser grande e sair de casa para morar longe, nas cidades onde se falavam que os automóveis eram tantos que se misturavam nas ruas com o povaréu.
Mas nem tudo é alegria na vida da gente e hoje, nem memória boa tenho mais para beber de volta o doce daquela vidinha de interior, cheia de anjos e santos e raros demônios. Olho daqui da janela deste arranha-céu que mais parece querer arranhar o céu mesmo! Lá em baixo a multidão louca passa de um lado para o outro da avenida grande. Faz onze anos que não apanho o elevador e desço à calçada. Quero morrer mesmo é de saudade! Sei que pra lá não volto mais...”
- Dona fulana, saia dessa janela, a senhora adoece, esse vento frio...
“ E aquela maluca da faxineira não enxergava a minha dor de saudade nem a força que o vento de minha tristeza tinha. Eu nem ligava para o que ela me dizia. Deixava pra lá mesmo!
- Dona fulana...
“ Ó que mulher chata eu dizia com ela. Chamava-a de dona Sicrana! Era boazinha ela , mas nunca soube o que era ser feliz.”
- A minha vó morreu com a lucidez doce de seus solilóquios, apenas sendo importunada por mim, sua neta Irene, que ela chamava de senhorita Sicrana. É que aqui, no alto destes arranha-céus da Avenida Paulista, nem para se sonhar com o bucólico dos tempos dela é-nos possível mais. Eu guardo em minha oralidade a oralidade do anjo-de-guarda de minha vozinha, como a única forma que achei de sonhar com os tempos tão belos que apenas este conto me permite nele viver. Quando eu ficar senil, se é que chegarei lá, vou me permitir vivê-la com a fantasia das palavras que eu puder criar, se a modernidade não me tornar uma surdo-muda além de infeliz. Como são doces essas lembranças dos nossos antepassados...