Almas Gêmeas
Felipe vinha cantarolando no elevador e sorriu, ao ver no espelho o rosto bonito e bronzeado, a barba bem feita, nenhuma cicatriz, nenhuma sarda, nada. Herdara da mãe a beleza luso-hispânica, o nariz pontudo e petulante, os lábios carnudos, o olhar propositadamente triste e sedutor.
O elevador parou no subsolo, com aquele tranco desagradável característico. Abriu o carro, acomodou o paletó no cabide, jogou a valise sobre o banco do passageiro e entrou, carregando na mão a caixa de CD. Sentou-se, ligou o carro e pegou na caixa o disco do Edson Cordeiro. Começou a cantarolar: “Lord won’t you buy me a Mercedes Benz?...”, enquanto posicionava o CD para inseri-lo no toca-discos. Foi quando se deu conta. Esquecera a frente do aparelho lá em cima. Não sabia por quê a tirara na véspera. Normalmente não fazia isso na garagem do próprio prédio mas, ah! fora Letícia. Eles haviam saído juntos no carro dele e ela a tirou, mecanicamente como fazia muitas vezes. Irritava-se com essa característica dela. Gestos impensados, automáticos.
Pobre Letícia... O namoro já se arrastava há dois anos. Ela, tão apaixonada, tão solícita... Era uma espécie de mãe substituta, superprotetora. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que se decidir quanto à Letícia. Não que não gostasse dela. Era linda, sensual, apaixonada. Faltava-lhe uma certa sutileza, um quê de reserva, de mistério, de discrição. Características suas e que ele valorizava muito numa mulher. Mas jamais encontrara alguém tão próximo de seus ideais quanto a namorada.
Pensou em subir para procurar o apetrecho, mas lembrou-se do elevador lento e barulhento. Não, não teria tempo para isso. Resignou-se, guardou os discos no encaixe da porta. Engatou a marcha e saiu.
Denise era o que poderia se chamar uma ativa nata. Estava acordada desde as cinco da manhã, arrumando as roupas espalhadas pelo quarto. Na véspera, chegara agitada e ansiosa por retomar a conversa com aquele homem que, via Internet, lhe parecia tão fascinante. Haviam se conhecido num grupo de discussão sobre literatura. Logo passaram às mensagens particulares e depois, às salas de chat. Já se correspondiam há quase um mês, embora não se conhecessem pessoalmente. Ele escrevia mais, contava muito de si e de sua vida e já havia lhe proposto trocarem fotografias. Ela, reservada, temia abrir-se muito. O mistério que envolvia as letras coloridas que apareciam no seu monitor, a curiosidade de conhecê-lo pessoalmente eram como um catalisador para aquela paixão infantil que agora já a envolvia como um abraço cálido.
Finalmente, Fernando entrou na sala e os dois iniciaram a conversa cibernética. Ele era tão encantador, na sua forma extrovertida e franca de lhe falar, de lhe contar seu dia... Ela, às vezes, ficava se perguntando se devia mesmo dar vazão a toda essa paixão. Mas, inebriava-se com a conversa e esquecia as preocupações. Não pode acreditar quando ele propôs o encontro. Sim, por que não? Já se conheciam tão bem. Poderiam perfeitamente ir tomar um chopinho juntos. Conversar pessoalmente... Descreveu a roupa que pretendia usar e disse que estaria levando na mão o livro de poesia que o incentivara a comprar... Ele também descreveu as roupas que usaria e levaria o mesmo livro.
Ela estava agora, sob o sol suave da manhã, fazendo alguns exercícios de aquecimento antes de entrar na piscina para atravessá-la várias vezes, nadando com vigor por quase uma hora. Depois, fez mais alguns exercícios dentro da água e outros fora. Finalmente, pegando a toalha e enrolando-se nela, entrou na casa e subiu para o quarto. Tomou um banho demorado, perfumou-se, vestiu a roupa combinada, escovou os cabelos cheios e desceu para a copa, para sentar-se à mesa e saborear o café da manhã caprichado. Levantou-se, pegou sua bolsa e o livro e entrou no seu lindo jeep Wrangler vermelho. Ligou o rádio do carro, selecionou um CD e o colocou no aparelho. Conferiu o relógio. Perfeito. Chegaria bem na hora ao trabalho.
Felipe parou no semáforo, distraído, ainda cantarolando a música. A manhã estava fresca e ele mantinha as janelas abertas, dispensando o ar condicionado. Então ele ouviu. Do som do carro ao lado, Edson Cordeiro prosseguia com a música, exatamente do ponto em que ele estava cantando. Viu a bela mulher, as mãos batucando no volante, marcando o baixo com os dedos, enquanto assobiava a melodia. Sorriu. Há quantos anos, não via uma mulher assobiar. Achou-a sensual, na sua felicidade despreocupada, sua falta de pudor, a boca em forma de bico. Parecia tão perfeitamente natural, sem medo do que os outros pudessem pensar. Depois, sorriu de si mesmo. Afinal, até agora há pouco, também ele estava ali, ignorando o resto do mundo, cantarolando com a voz grave e batucando, exatamente como ela, no couro macio do volante do carro.
Ela chegou ao restaurante no horário marcado. Levava o livro na mão e olhava atentamente cada rosto ao seu lado, à procura do livro igual. Foi quando viu o rapaz bonito, sentado sozinho, olhando para ela, como se a conhecesse, até que abriu um sorriso. Este era Fernando. Era mais do que jamais imaginara. O modo de se vestir, a aparência suave e limpa, muito limpa, olhando-a com curiosidade e afeição. O rosto angular, perfeito, emoldurado pela cabeleira negra, os olhos expressivos, muito pretos. O nariz era fino e impertinente, embora todos os outros traços de seu rosto aparentassem uma beleza quase infantil, terna e ingênua. Ela começou a se encaminhar até a mesa, estrategicamente localizada junto a uma das janelas. Lembrou-se de ter-lhe dito uma vez, que gostava de sentar-se próximo às janelas, nos restaurantes. Gostava de olhar a paisagem lá fora ou apenas não sentir-se trancada em algum lugar. Sorriu. Tomou, decidida, a direção da mesa dele e, a apenas alguns metros, observou consternada. Não havia o livro. Aquele homem não era Fernando. Aquele homem lindo e perfeito na ternura de seu olhar e cuja expressão convidativa a atraía como um ímã poderoso, não era ele. Parou, decepcionada, apertou o livro contra o peito e procurou disfarçar, andando lentamente entre as outras mesas. Sentiu o rosto afoguear-se, um calor que lhe percorria a espinha. Finalmente, a um canto mais afastado, percebeu o livro. Um homem sentado olhava para ela. Era bonito, muito bonito e sensual. Devia ter mesmo os trinta e quatro anos, que dizia ter. Tinha um rosto enigmático, mas muito másculo e gentil. Ele levantou-se quando ela se aproximou. Puxou a cadeira para que ela se sentasse. O mesmo carinho que sentiam um pelo outro através do teclado e monitor, agora se revelava real, palpável. Jantaram sem pressa. Ela ainda olhou algumas vezes para o outro rapaz que a encantara tão fortemente e os seus olhares chegaram a se encontrar em algumas delas, mas ele, agora, estava acompanhado de uma bela mulher loura e provocante que a olhou com enormes olhos azuis, donos de uma frieza poderosa, fazendo-a sentir-se intimidada e preferiu aproveitar a companhia de Fernando, que afinal, era exatamente como ela esperava que fosse.
Felipe chegou cedo ao restaurante. Sempre marcava com Letícia um horário a que pudesse se antecipar. Gostava de sentar-se próximo a janela. Ficar olhando a paisagem, as pessoas. O ambiente fechado o incomodava um pouco. Quando Letícia tinha chance de chegar primeiro, procurava mesas mais afastadas, em lugares mais escuros, discretos, onde dava vazão à sua paixão com beijos de tirar o fôlego e o pudor. Pediu um uísque e ficou girando-o no copo, enquanto esquadrinhava o restaurante com os olhos. De repente, percebeu que alguma coisa atraía a atenção dos homens às mesas vizinhas. Letícia chegou, pensou. Era sempre assim. Onde quer que fossem, no ambiente mais requintado ou no mais vulgar, Letícia tinha aquela voluptuosa beleza estética que fazia os homens se voltarem para vê-la. Vestia-se com refinamento, mas sempre de forma provocante e sensual. Ele não gostava muito disso. Sentia-se orgulhoso de ser o possuidor do alvo de desejo de todas aquelas pessoas, mas não gostava que ela percebesse isso. E muito menos, que gostasse de provocar isso. Acompanhou os olhares em direção à porta e viu a mulher. Não Letícia, mas uma outra fascinante mulher. Também refinada, vestindo um taileur claro, os pequeninos sapatos altos, os cabelos escuros, quase negros, cheios e cacheados... Era realmente linda, mas de uma beleza etérea e inatingível, quase onírica. Olhou os rostos a sua volta e percebeu que os que a olhavam também pensavam a mesma coisa. Não era simplesmente uma atração sexual, era um enlevo. Todos olhavam para um anjo.
Ela vinha caminhando entre as mesas, como se procurasse alguém que não conhecia, olhando todos os rostos. Quando seus olhares se encontraram, Felipe sentiu um calafrio, que o percorreu desde a virilha, até o início do pescoço. Era a mesma mulher que ele vira pela manhã. Aquela que assobiava feliz e independente, na direção de um poderoso jeep, e que, agora, parecia tão frágil e perdida nesse universo masculino que a cercava. Sorriu para ela. Não se enciumava com os olhares. Ela os ignorava completamente como o fizera pela manhã, assobiando no carro. Seu mundo só era acessível para aqueles a quem ela o abria. E agora ela o abria para ele, interessada nele, estudando-o, sorrindo. E que sorriso! Percebeu que não olhava mais para um anjo, mas para a mulher que gostava da mesma música que ele, que assobiava e batucava no volante como ele, e que caminhava, quase decidida, para a sua mesa. Sentiu novamente o arrepio percorrendo-lhe o corpo. Desde o interior das coxas, até a base da nuca. Desta vez, o apelo sexual da química do organismo. Muito mais forte do que os que sentia com Letícia, a bela e sexy Letícia.
Então ela parou. Olhou para sua mesa. Uma sombra percorreu-lhe os olhos, uma ligeira decepção, um rubor, e começou a caminhar novamente, novamente procurando, para finalmente sentar-se com outro homem num canto escuro e discreto exatamente como Letícia teria escolhido. O homem levantou-se para recebê-la, beijaram-se no rosto com estranheza, era, obviamente, um primeiro encontro. Viu-o puxar a cadeira e murmurar alguma coisa. Mas aquele homem não combinava com ela. Era másculo demais, forte demais, voluptuoso e sexual demais para seu anjo. Sorriu. Seu anjo. Já se adonava da mulher. Ficou olhando-a distraído, o uísque ainda no copo. Seus olhos se encontraram mais algumas vezes. Nem se deu conta da chegada de Letícia, a não ser quando ela, já sentada, percebeu o que acontecia e lançou um de seus olhares mais furiosos para a moça, fazendo-a baixar os olhos e esquecer-se por completo deles ali.
Denise sentou-se próxima à janela do restaurante. Pediu uma água com gás. Parecia aflita e inquieta, abanando-se com o pequeno envelope amarelo. Grávida! Ao mesmo tempo, estava feliz. Difícil explicar. Mas gostava da idéia de ser mãe. Agora que faria trinta anos, seu relógio biológico parecia alarmado e ansioso em concretizar este sonho. No entanto, a gravidez fora acidental. Achava que aquela não era a hora certa. Não ainda. Estava no meio de um mestrado, a tese mal havia sido iniciada. Haveria muito trabalho pela frente. Além disso, não estava tão certa ainda de que Fernando fosse a pessoa ideal para ela. Havia muitas diferenças entre eles. Gostava da companhia dele, de sua conversa, sua cultura geral, do jeito como ele a tratava, das constantes surpresas e demonstrações de carinho. Não tinha dúvidas dos sentimentos dele. Mas havia algo nele que a incomodava um pouco, um jeito meio mecânico de fazer as coisas do dia a dia, meio estabanado. Ele era superprotetor e ciumento, e às vezes a constrangia com sua voluptuosidade. Além disso, sua beleza máscula atraindo os olhares femininos à sua volta também a enciumavam, mas o que mais a irritava era perceber o quanto isso o agradava. Ele era vaidoso e orgulhoso da própria beleza. Não sabia qual seria a reação dele ao saber da gravidez. E, o que era mais significativo. Sinceramente, não se importava. Se ele quisesse deixá-la ou sugerisse um aborto, ela não se importaria. Ela o deixaria e teria seu bebê sozinha. Seria feliz sem ele, tinha certeza disso. E isso a fazia duvidar ainda mais dos próprios sentimentos.
Mas, o que ela não esperava mesmo, era a presença de Felipe na mesa ao lado. Ao olhar distraidamente em volta, seus olhos se encontraram e ela o reconheceu imediatamente. Impressionante. Só o vira uma vez, há quase três anos, mas lá estava ele, sentado, olhando para ela, sorridente, curioso. Ele também a havia reconhecido. O olhar tão expressivo, quase convidando-se para sentar-se com ela. Ficou olhando seus lábios atraentes, sentiu desejo em beijá-lo. Olhou o cabelo, imaginou-se emaranhando suas mãos naquela cabeleira negra. Baixou os olhos para as mãos. Sempre dera tanta importância para as mãos, num homem. Lá estavam elas, saindo suavemente das mangas da camisa muito branca. O relógio grande, esportivo, a pele bronzeada, alguns poucos pelos negros. Imaginou aquelas mãos percorrendo seu corpo com furor. Ele, então virou a mão esquerda, e ela pode observar a reluzente aliança. Ela sorriu, ligeiramente decepcionada. Ele estava obviamente mostrando a aliança, apesar de ele mesmo parecer incomodado com ela. Uma loura chegou. Reconheceu-a imediatamente. Era a mesma que lhe lançara um olhar furioso há tanto tempo. Ela sentou-se com ele, após um beijo de cinema e chamou o garçom, pedindo uma bebida.
Foi quando Fernando chegou. Ele vinha sorridente, tirou os óculos escuros exibindo seus lindos olhos verdes, sentou-se, beijou-a demoradamente e começou a tagarelar alegremente sobre os feitos do dia. Só depois de alguns instantes é que se deu conta do envelope sobre a mesa. Viu o timbre do laboratório. Calou-se, arqueando as sobrancelhas com curiosidade e preocupação. Ela baixou os olhos, sentiu o rosto corar. E entregou-lhe o envelope, observando-o atentamente enquanto ele investigava seu conteúdo. Seu rosto abriu-se num enorme sorriso, numa alegria incontrolável e ele quase derrubou a mesa na ânsia de abraçá-la feliz. Ela jamais poderia esperar essa reação dele, mas deixou-se contagiar e retribuiu ao forte abraço, para em seguida ser suavemente repelida:
- Oh! Estou te apertando demais, desculpe-me – murmurou ele carinhoso e passou a mão sobre sua barriga com muita delicadeza.
Em seguida ele se ajoelhou e a pediu em casamento.
Quando Letícia entrou na sala de parto, Felipe andava de um lado a outro, inquieto e preocupado. Luciana nasceu rápido, e logo os três estavam num quarto devidamente ornamentado para a chegada da menina. Depois de tanta ansiedade e com a chegada da sogra ele decidiu sair um pouco, para tomar um ar. Passando pela pediatria, viu um lindo garotinho moreno, com enormes olhos verdes, que exibia, feliz, o bracinho engessado. Abaixou-se para puxar assunto. O pequeno, muito falante, contou que se chamava Adriano, seu pai, Fernando, sua mãe, Denise e que quebrou o braço ao cair de uma árvore. Depois o convidou a assinar seu nome no gesso recém colocado. Assim que desenhou o último “E”, sentiu-se observado e percebeu a presença de uma mulher, certamente, a mãe da criança. E não pode conter a emoção ao reconhecer Denise, que o olhava sorridente e agitada. Ele balbuciou qualquer coisa que só ela entendeu e ela respondeu com um grunhido estranho, mas perfeitamente compreensível para ele. Eles teriam se abraçado e beijado furiosamente ali mesmo, não fosse a presença do pequeno que nesse momento agarrou-se às pernas dela pedindo um sorvete. Esse apelo fê-la despertar do transe e ela, quase num tranco, pegou a mão do filho e correu em direção à porta do hospital.
Na madrugada fria, Letícia e Luciana, choravam abraçadas aos pais de Felipe. No caixão, ele parecia dormir, muito tranqüilo, um suave sorriso estampando-lhe a face. A cabeça emoldurada pelos cabelos negros, entremeados de charmosos fios brancos repousava suavemente sobre o travesseiro acetinado. Alguns amigos começaram a encher a capela e trazer um pouco de conforto à família. Gente demais, alguns que ela nem conhecia e Luciana resolveu dar uma volta, para poder ficar um pouco sozinha com sua dor.
Na capela ao lado, Fernando e Adriano recebiam os pêsames dos amigos e familiares. Denise jazia muito linda, a cabeleira muito negra emoldurando seu rosto ainda delicado. Adriano sentia-se amargurado e infeliz e todas aquelas pessoas à sua volta o faziam sentir-se sufocado. Então pediu licença ao pai e saiu para tomar um pouco de ar.
Luciana, sentou-se num banco, a alguns metros das capelas. Levantou as pernas e abraçou-se a elas, chorando baixinho, a cabeça apoiada sobre os joelhos, a linda cabeleira negra cobrindo os ombros e parte das coxas. Era reconfortante aquela posição, no frio ainda intenso da manhã sem sol.
Adriano parecia mais novo do que realmente era. Andava entre as campas, observando as lápides, calculando as idades dos mortos. Uma forma de conduzir seu pensamento para longe da enorme amargura em que seu coração se encontrava. Grossas lágrimas escorriam por seu rosto e ele não se preocupava em escondê-las.
Foi quando viu Luciana. E, ao perceber a presença dele, ela levantou os olhos úmidos e também deteve-se alguns segundos a observá-lo. Depois, dando-se conta de sua posição meio ridícula, desceu as pernas, ajeitou os cabelos e secou disfarçadamente os lindos olhos azuis, procurando mostrar-se apresentável. Os dois continuaram algum tempo nessa mútua análise e indisfarçável interesse até se darem conta de que estavam num cemitério, e que muito próximo dali estavam os corpos de seu pai e sua mãe. Definitivamente, não era o local nem o momento mais adequado para paqueras. Mas a atração que sentiam era completamente incontrolável. Ao perceber que ela, apesar de haver esboçado um discreto movimento na intenção de levantar-se e voltar para junto da mãe, permaneceu ali como hipnotizada e, mesmo sabendo que precisava voltar para junto do pai, ele sentou-se ao seu lado. Não sabia muito o que dizer. Sabia que estava com o rosto inchado, os olhos avermelhados de tanto chorar, assim como ela. Sabia também que o calor daquele corpo estranho apenas de leve tocando o seu lhe trouxe mais conforto do que todos os abraços e cumprimentos que havia recebido durante essa noite infernal. E Luciana, que sempre gostara de frio, sentia agora com prazer aquele estranho que a fazia sentir ternamente aquecida. Não podiam ficar ali, sem uma palavra e os dois, ao mesmo tempo, começaram:
- Oi... eu sou...
Neste momento, coincidentemente, Fernando e Letícia apareceram, cada um à porta das capelas onde jaziam Denise e Felipe e chamaram os filhos. Luciana e Adriano levantaram-se assustados e cada um correu para junto dos seus, não sem antes trocarem olhares sedentos e angustiados com a inesperada separação.
Os dois cortejos saíram exatamente ao mesmo tempo, cada um para um lado diferente do cemitério. Adriano, amparando o pai, pode ver Luciana afastando-se, abraçada à mãe, olhando ansiosamente para ele. A dor da perda da mãe agora ganhava mais um aliado, uma intensa aflição por estar se separando daquela mulher incrível que ele nem conhecia, mas sentia uma necessidade imperiosa de conhecer. E, assim que a pequena multidão se dissipou após o enterro, correu para a porta do cemitério, na esperança de encontrá-la. Luciana estava completamente arrasada pela perda do pai tão amado. Mas não conseguia concentrar-se nas orações e, assim que pode, voltou correndo às capelas na esperança de encontrar Adriano. Sentou-se no banco onde estavam há alguns instantes e buscava reconhecê-lo entre os muitos passantes daquela hora da manhã.
Adriano ficou ao lado do portão. Olhava com atenção todas as mulheres morenas que passavam ao seu lado. Sabia que a reconheceria de qualquer modo, mas não queria correr o risco de perdê-la novamente. Fernando parou o carro ao seu lado e ele acabou se conformando e embarcou.
Luciana finalmente resignou-se e entrou no carro, onde Letícia já a aguardava.
Os dois saíram praticamente juntos do cemitério, um carro atrás do outro.
Fernando freou o carro bruscamente, para não atropelar o vendedor de flores que se lançou perigosamente na frente do carro.
Letícia ainda anestesiada pelos últimos momentos de dor, não conseguiu evitar a batida. Quando os quatro desceram para avaliar os estragos e discutir providências, Adriano e Luciana se reconheceram. Sem pensar em mais nada, sem nenhum controle, sem se preocuparem com os pais ou os demais passantes, os dois se abraçaram e beijaram apaixonadamente, saciando, com furor, uma vontade guardada e amordaçada desde sempre.