Chorou antes de matar por encomenda

Arquivos queimados,

casos arquivados

– Eu não quero te matar, mas estão me obrigando.

– Mas por quê, quem está te obrigando?

Esse diálogo acontecido em 26 de fevereiro de 1979 entre o soldado da PM Floriano Ojeda e o comerciante Severino Miola foi testemunhado pelo taxista Arnoldo Petsch, e consta está em seu depoimento no inquérito aberto para apurar o assassinato do dono do Bar e Dormitório do Oeste, em Ramilândia.

Com a execução de Miola, um cidadão querido por todos em Ramilândia, aonde foi morar após pedir demissão na Prefeitura de Cascavel, foi apagada a última pista que poderia elucidar as mortes do ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha, Alberi Vieira dos Santos e de seu irmão José Soares dos Santos.

No bar e dormitório localizado na rua principal de Ramilândia, costumava hospedar-se o ex-sargento Alberi, que foi o idealizador da guerrilha, comandada pelo coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório. Este movimento de resistência ao golpe militar que derrubou o presidente João Goulart foi deflagrado em 25 de março de 1965 e dois dias depois acabou sendo violentamente reprimido na localidade de Santa Lúcia, município de Capitão Leônidas Marques.

Na noite de 25 de março, Cardim e Alberi comandando um grupo de 19 homens partiram de Campo Novo rumo a Três Passos, aonde

chegaram na madrugada do dia seguinte. Sem encontrar resistência, assaltaram o destacamento local da Brigada Militar, apossando-se de 30 mosquetões e quatro fuzis-metralhadoras, além de 600 cartuchos.

Ainda nessa madrugada, ocuparam a Rádio Difusora e divulgaram um manifesto esclarecendo os motivos do movimento. Em seguida, os guerrilheiros atravessaram o oeste de Santa Catarina e entraram no Paraná por Barracão.

Ao tomarem conhecimento do movimento guerrilheiro as autoridades militares determinaram o imediato deslocamento de tropas para a região de Capitão Leônidas Marques. Naquele dia - 27 de março de 1965, o general Castello Branco se encontrava em Foz do Iguaçu, inaugurando a Ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai. A deflagração de um movimento guerrilheiro justamente no dia em que Castelo visitava a região pôs em alerta o poderoso III Exército. Cinco mil soldados foram mobilizados para combater os guerrilheiros. Às dez horas da manhã houve o primeiro confronto com as tropas do Exército na região situada entre Santa Lúcia e Lindoeste. Depois de intenso tiroteio o coronel Jefferson Cardim, o sargento Alberi e mais 23 guerrilheiros foram presos e conduzidos para o 1º Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu. Os presos passaram por seguidas sessões de tortura que duraram uma semana e um deles, Silvano Soares dos Santos, irmão caçula de Alberi, morreu alguns dias após ter sido jogado do segundo andar do prédio do Batalhão.

Quatro anos depois desses acontecimentos, em 1969, eu conheci o Alberi no Presídio do Ahú, em Curitiba, para onde eram levados os presos políticos do Paraná e Santa Catarina.

Passados outros quatro anos, em 1973, eu tive um encontro casual com Alberi no centro de Buenos Aires. Andava pela Corrientes quando avistei o Alberi conversando com Onofre Pinto, um dos fundadores e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, uma das mais ativas organizações da esquerda armada brasileira. Entrei num café para me esconder, mas de nada adiantou, pois não demorou muito o Alberi se encostou a mim junto ao balcão e segurando o meu braço contou que estava coordenando a entrada no Brasil de um grupo de revolucionários. Revelou que tinha conhecimento que eu estava rearticulando bases na região do Alto Uruguai e que deveríamos juntar os nossos trabalhos para a realização de futuras ações.

Alberi sempre foi conversador, mas naquela tarde de janeiro de 1974, ele me surpreendeu ao quebrar as mais elementares regras de segurança. Tudo bem que eu também era da VPR, mas minhas atividades eram absolutamente compartimentadas. Depois das quedas em Recife, provocadas pelo traidor cabo Anselmo, eu e meus companheiros da Frente Sul (assim era chamado o grupo que atuava na fronteira Brasil/Argentina, no Paraná e Santa Catarina) decidimos que seríamos clandestinos inclusive em relação a organização. Nossa opção pela clandestinidade dentro da clandestinidade foi por uma questão de sobrevivência.

Sem dessa nossa disposição de romper contatos, Alberi soltou o verbo durante nosso encontro em Buenos Aires. Falou que tinha um esquema para entrar e sair do Brasil em total segurança e que a fachada legal era uma serraria em Santo Antônio do Sudoeste, fronteira seca entre o Brasil e Argentina. Após ter me convidado para conhecer sua estrutura e tê-la colocado a minha disposição pediu um novo encontro para acertar os detalhes. Marquei para as oito horas da noite do mesmo dia, mas como seguro morreu de velho eu caí fora de Buenos Aires. Depois de percorrer quase dois mil quilômetros, com três trocas de ônibus, desembarquei na tarde do dia seguinte na poeirenta rodoviária de El Sobérbio, naquela época uma pequena vila da Província de Misiones, próxima a fronteira com o Brasil.

Mais tarde, depois da anistia, fiquei sabendo que todos os membros do grupo que acompanhou o Alberi foram assassinados quando entraram no Brasil em meados de 1974. O ex-sargento da brigada militar e guerrilheiro de 65 havia se bandeado para o outro lado e conduzido os sete militantes da VPR para uma emboscada.

O único sobrevivente foi Alberi, que após a chacina foi ser fazendeiro em Rondonópolis, Mato Grosso, depois de passar uma temporada em Puerto Iguazú, Argentina e só voltou à Região Oeste quando soube da morte de seu irmão, José Soares dos Santos.

José, que tinha uma oficina mecânica na Vila Iolanda, em Foz do Iguaçu, apareceu morto em janeiro de 1977, na Estrada do Colono, que cruzava o Parque Nacional do Iguaçu, próximo ao Porto Moisés Lupion. Seu corpo estava completamente mutilado, apresentando sinais evidentes de tortura, com os olhos vazados por gravetos e castração.

Transtornado com a morte do irmão, Alberi jurou vingança. Ainda em Rondonópolis, escreveu um extenso relatório e às sete horas da manhã do dia 10 de fevereiro de 1979 partiu, dirigindo a sua Brasília, com destino a Porto Alegre. O pouco que se sabe sobre o conteúdo das 50 folhas datilografadas é que nelas ele revelava os nomes dos assassinos do irmão, relatava suas passagens por presídios e como ocorreram as negociações com os militares que acabaram transformando-o em um traidor.

No mesmo dia em que saiu de Rondonópolis, Alberi chegou a Medianeira e como já era noite e estava cansado devido a longa viagem decidiu pousar na casa do seu amigo Severino Miola, em Ramilândia. No dia seguinte o ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha apareceu morto na estrada que liga Medianeira a Missal. Havia levado quatro tiros de pistola nove milímetros, arma privativa do Exército. No Auto de Achada de Cadáver, o delegado de Medianeira, Francisco Marcondes, relatou que nos bolsos de Alberi não foram encontrados documentos, jóias, dinheiro ou quaisquer outros papéis. O relatório que poderia elucidar um dos mais instigantes mistérios da fronteira havia sumido. As investigações do crime se arrastaram por mais de seis anos sem que se tenha chegado ao seu autor ou autores. Em seu despacho datado de 25 de fevereiro de 1985, o promotor João Péricles Goulart escreveu que tanto Alberi como seu irmão José foram vítimas de crime político, e que possivelmente teriam sido mortos por alguém interessado no silêncio dos dois.

Chorou antes de

matar por encomenda

O mesmo destino de Alberi e seu irmão José teve o comerciante Severino Miola, executado por Floriano Ojeda quinze dias após a morte do ex-

sargento. Foi no bar e dormitório do amigo e confidente que Alberi terminou de escrever o relatório que poderia fornecer pistas sobre as circunstancias e os responsáveis pelas mortes dos militantes da VPR, ocorridas em 1974. Miola morreu porque conhecia o conteúdo do relatório. Foi executado no interior de Santa Helena, no meio de uma plantação de soja, pedindo de joelhos clemência ao seu verdugo.

Nos autos que estão arquivados no Fórum de Santa Helena chama atenção o depoimento de Sueli Luiza Bogoni Miola, filha de Severino Miola, e que ajudava o pai no bar e dormitório. Conta Sueli que no período da manhã do dia 26 de fevereiro de 1979 estava dedicando-se aos afazeres normais e corriqueiros, quando por volta do meio-dia chegaram ao estabelecimento comercial os policiais Floriano Ojeda e Natalino de tal, ambos destacados na delegacia de Matelândia e que se faziam acompanhar por um professor da mesma cidade.

Os clientes sentaram a uma mesa e pediram refeição. Ainda de acordo com o depoimento de Sueli, Ojeda estava “um tanto perturbado e esquisito, tendo inclusive chorado em um canto do refeitório”.

Ao ver o soldado naquele estado, Miola passou o braço por cima do seu ombro e quis saber por que ele chorava. Ojeda respondeu que era por motivo particular e amuado puxou uma cadeira e foi sentar num canto do salão. Sueli se aproximou dele com o prato de comida, mas o soldado a repeliu e continuou de cabeça baixa, olhando fixamente para o chão.

Assim que terminou de comer Ojeda mandou o comerciante acompanhá-lo até Matelândia pois o delegado de polícia queria falar com ele. Miola achou estranho, mas mesmo assim acompanhou o soldado até um táxi que estava estacionado em frente ao estabelecimento. Não sabia que aquela seria uma viagem sem volta.

Em seu depoimento ao delegado Manoel Fernandes, o taxista Arnoldo Petsch, testemunha ocular da execução, relatou que quando chegaram numa estrada vicinal na localidade de Linha Celeste, interior de Santa Helena, Ojeda empunhou um revólver e mandou Miola descer. “Eu implorei, pedi por misericórdia ao soldado Ojeda que ele não nos matasse, pois éramos dois velhinhos e precisávamos viver. Disse que ele podia levar nosso dinheiro e o carro. Aí ele respondeu que eu seria poupado, mas o outro ele iria matar”, contou o taxista.

Petsch relatou ainda ao delegado de Ramilandia que Miola saiu do veículo, ajoelhou-se e com as mãos postas, implorou pela sua vida gritando: “Meu santo me ajuda”.

Nesse instante Floriano Ojeda deu o primeiro tiro atingindo sua vítima na altura da boca, que mesmo ferido entrou numa plantação de soja enquanto o soldado da PM corria em sua perseguição dando outros tiros. Assim que Miola caiu o assassino atirou mais uma vez atingindo o comerciante na cabeça. Em seguida pediu ao taxista que o levasse a Itacorá e de lá cruzou para o Paraguai.

Aluizio Palmar
Enviado por Aluizio Palmar em 22/01/2008
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