O BERÇO

O berço

Aluízio Palmar

Naquele outono de pouca chuva, o cheiro de merda humana entrava no corpo pelos poros e narinas. Como todos os anos, a exalação cálida de fezes humanas depositadas às margens do Monjolo, se misturava à poeira vermelha levantada pelos ventos vindos do Paraguai.

Era um sábado de abril e os altos e baixos das poucas e esburacadas ruas estavam vazias, desertas. Foz do Iguaçu, que tinha o privilégio ingrato de ser o maior mercado de mensus da região, estava às moscas. Com a chegada dos revolucionários, nem os ervateiros ousaram descer do Porto Mendes para contratar peões e comprar provisões.

No casarão de muitos cômodos e salão amplo, que às vezes servia como pensão, Ana Rosa reavivava o fogo e esquentava água para o chimarrão na chaleira de ferro fundido, preta de fuligem. Enquanto batia os tições ela resmungava pela falta de movimento. Também não era para menos. Além do fedor das latrinas transbordadas que empestava cada canto da cidade, nem os colonos, que costumavam fazer suas compras, tomar cachaça e jogar do bolão ao truco apareceram naquele final de semana. Funcionários públicos e comerciantes então nem se fala. Bandearam todos para o outro lado do Rio Iguaçu. Dizem que até o juiz teve tremedeira nas pernas e se escondeu na casa de um amigo argentino.

Ana Rosa estava uma arara. Praguejava enquanto mexia nas brasas, dirigindo suas queixas a uma rapariga que cevava o mate na cuia. “Que façam bom proveito na Argentina, pois aqui não gastam nada mesmo. Bando de cagões! Agora estamos nessa soneira, esperando a soldadesca sair da toca. Quando carajo esses molengas vão dar as caras? Desde que chegaram estão acantonados lá pros lados dos depósitos de madeira. Morrem de medo dos oficiais. É como dizem, quem não deve não teme. Que mal carinho de mulher pode fazer para a revolução? Desse tipo de apuro os oficiais não sofrem. Eles bem que têm por lá suas vivandeiras”.

Entre uma e outra cuia de chimarrão, Ana Rosa continuou reclamando da falta de movimento. E assim era, pois naqueles dias de revolução, com a cidade ocupada pela tropa do general Isidoro, ninguém se atrevia a freqüentar os boliches e muito menos a pensão. Uns e outros que ousaram dar as caras no casarão da “baixada do botafogo” acabaram sendo castigados pelos sargentos que, tal perdigueiros, vistoriavam cada palmo das ruas da cidade. De vez em quando eles davam batidas na pensão, rodeavam a casa, espiavam através das telas de arame, fuçavam os quartos, proseavam com as mulheres e iam embora sem gastar um pila sequer.

A quietude da tarde e os pensamentos de Ana Rosa só foram quebrados quando um sargento entrou no salão. Conhecedora de todos os meandros da existência, ela pressentiu que aquele não era um perdigueiro qualquer, não estava em missão de caçar soldados, nem tampouco atrás de mulher ou pinga. Continuou sentada, sem lengalenga ou recordações, enquanto o militar vistoriava o salão e os cômodos da casa.Tinha a paciência curtida e sabia muito bem manejar o tempo. Apenas esperou e só ficou de pé quando o sargento se dirigiu a ela após cumprir sua diligência.

- Dona Rosa, venho de parte do Tenente Cabanas. Ele mandou avisar que amanhã o general Isidoro vai precisar deste salão para uma reunião com o capitão Luiz Carlos Prestes. Arrume mais uns bancos e cadeiras, pois devem participar todos os oficiais que estão no Depósito Central e outros tantos que estão a caminho. Veja acomodação para quarenta homens.

Dado o recado o sargento saiu, assim como chegou, sozinho, trazendo o uniforme e o corpo tomados por uma crosta de suor e poeira.

Na madrugada do dia seguinte, João Cabanas foi pessoalmente inspecionar o casarão de Ana Rosa. Estava ainda escuro quando apareceu com seu inseparável chapelão e apito pendurado no pescoço. Mandou preparar o almoço para os oficiais e disse que todas as despesas seriam pagas pelo comando. Em seguida ordenou que os quatro costados da casa fossem guarnecidos; e enquanto esperava a tropa cumprir suas ordens enrolou um cigarro.

Ficou de pé, encostado no balcão e olhou para a rapariga que antes cevava mate. Formosa ela era. Morena, de olhos grandes e cabelos tão compridos que lhe vestiam as costas, a moça, postada num dos pés-direitos do salão, notou a mirada do tenente e fixou os seus no chão. Ficou vexada e sentiu quentura na face, coisas que já até havia esquecido. Talvez fosse aquele olhar a oportunidade esperada para se livrar daquela vida.

Enquanto baforava colunas de fumo, Cabanas fazia planos de levar a moça para o acampamento e depois – por que não? – levá-la para seguir viagem pelos caminhos da revolução. Afinal, quase todos os outros oficiais tinham companhia e ele com trinta anos ainda não completados andava de jejum desde que saíram de São Paulo e se embrenharam no sertão. Olhava a rapariga e parecia que uma onda de fogo percorria-lhe as veias. Imaginava-a nua sobre sua cama de pelegos de carneiro, os cabelos compridos cobrindo seus seios.

Perdido em seus pensamentos, Cabanas não sentiu passar as horas nem a entrada no salão do general Isidoro, que chegava acompanhado por um grupo de oficiais, entre eles um homem franzino, baixo e barbudo. Era Luiz Carlos Prestes. Ele vinha de Barracão, depois de três meses de marcha pelos campos e florestas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e sudoeste do Paraná.

Quando Prestes entrou na pousada o clima entre os revolucionários era de desânimo e capitulação. Diante das dificuldades o homem franzino fez-se gigante. Pediu a palavra e defendeu com paixão a marcha revolucionária contra o governo de Artur Bernardes.

Debruçadas no balcão, as duas mulheres assistiram com ar distante a reunião e a euforia que tomou conta dos militares. Ana Rosa esperou os oficiais retirarem-se, caminhou com passos mansos até o meio do salão para pôr em ordem os bancos e cadeiras. Cabanas foi o ultimo a sair. Antes, porém, olhou para a moça e pegou na aba do chapéu. A rapariga retribuiu o aceno lançando um sorriso discreto para o tenente, como se tivesse adivinhado suas intenções e aceitado o convite.

Lá fora o tropel desordenado da cavalaria levantou novas nuvens de poeira, deixando pra trás o casarão de madeira, sem cor definida e com telhado de folhas de zinco, onde momentos antes tinha nascida a coluna e também o mito.

Aluizio Palmar
Enviado por Aluizio Palmar em 21/01/2008
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