As Carpideiras
- Nunca me esqueci do dia que a Dona Anacleta me ligou. Corri para atender o telefone que ficava na sala e que não parava de berrar. Eu estava chegando em casa, era uma terça-feira, naquela noite quase não dormi. Sai angustiada um pouco antes para ir até a padaria comprar pãozinho com as últimas duas moedas que eu tinha na carteira. Eram quase 9 horas da manhã quando estava entrando em casa, eu corri para atender a ligação que mudaria por completo a minha vida. Mais cedo enxuguei as grossas lágrimas que não paravam de molhar minha blusa antes de sair para buscar meu pão pro café da manhã. O pote com pó de café estava pela metade, vendo isso minha angústia aumentou. Eu pensava que logo faltaria arroz e feijão na minha mesa. Pedi ajuda para Deus e todas as minhas santinhas. Maria, minha mãe, passa na frente! Meu coração batia as pressas.
Dona Anacleta era minha conhecida de vista. Fazíamos juntas com outras mulheres numa garagem de uma casa enorme daqui do bairro o terço juntas, as novenas, correntes de oração pontualmente às 18h para os amigos internados ou entrevados numa cama. Os pedidos eram muitos, não paravam de nos procurar para receberem um alento em forma de reza. Todas nós revezávamos com afinco para fazer orações para nossos vizinhos, familiares e completos desconhecidos.
Atendi a ligação meio sem fôlego. Do outro lado da linha ouvi a voz doce e calma me convidando para ir junto com outras carpideiras no cemitério da região para chorar uma morta. Uma das carpideiras ficou doente e depois de pensar por dias pela manhã daquela terça ela havia se lembrado de mim. Justamente no mesmo horário eu havia ajoelhado ao lado da minha cama e rezando e pedi ajuda aos céus ajuda pq na terra tudo ia mal pra mim.
Na hora fiquei desconcertada eu iria ganhar dinheiro para chorar num velório? E acompanhar depois o enterro também fazia parte do pacote, avisou Dona Anacleta. Isso não seria problema para mim. Eu estou acostumada em ir em hospital, velório e missa de sétimo dia, seja de familiares ou de vizinhos, afinal conheço muita gente e minha família tinha sido grande.
Ela disse que seria um teste. Podia ser que eu fosse chamada outras vezes, ou não. A mulher doente logo estaria bem e voltaria ao trabalho. Ela falou que me pagaria um tanto. Na hora que escutei o valor meu sorriso se abriu. Num só dia eu ganharia o dinheiro suficiente para fazer a feira da semana. Eu compraria frutas da época e algumas bolachinhas e doces da barraca dos sortidos do Seu Cicílio. Eu agradeci, aceitei o serviço e desliguei o telefone, depois ainda fiquei alguns minutos sentada no esfolado sofá da sala com o coração disparado de alegria e surpresa.
Dona Anacleta me orientou para ir toda de preto, levar na bolsa uma bíblia, um terço, um lenço para enxugar meu rosto, uma garrafinha de água e uma colega me emprestaria um lenço preto rendado para cobrir minha cabeça, pois eu não tinha um. Eu não deveria estar usando nem maquiagem nem esmalte nas unhas. Não era o caso. Chegando no estacionamento do cemitério eu seria apresentada para as outras mulheres. Deu tudo certo.
Cheguei antes do horário com medo de me atrasar e para demonstrar interesse da minha parte.
Dona Eleanor, a líder do grupo, me deu todas as orientações com voz pausada. Eu não tinha dúvidas. Agora eu precisava me concentrar para chorar. Eu não fazia ideia de como faria, mas precisava me sair bem. Poderia ser indicada quem sabe como carpideira volante. Quando uma das mulheres precisasse faltar eu assumiria o posto.
Entramos todas juntas e nos dirigimos para a sala 2 do velório onde estava em um caixão cheio de adornos dourados e feito de madeira nobre, que me pareceu mogno, coisa cara, dentro do caixão forrado de um tecido aveludado estava o corpo de uma senhora, com poucas rugas, cabelos bonitos, soube que ela havia sido maquiada por uma profissional. Várias coroas enormes de flores estavam ali com faixas prateadas com dizeres do tipo: "Dona Nair deixará saudades eternas nos corações de seus familiares e amigos". Vários parentes dela estavam presentes e observei que nenhum deles chorava. Uma jovem parecia emocionada. Não quis julga-los. Não sei da história de cada um e não preciso saber.
Logo uma das carpideiras começou a derrubar lágrimas. O rosto triste, os olhos transbordando de emoção por uma mulher que ela nunca tinha sequer visto antes.
Nessa hora pensei que eu precisava chorar. Comecei a matutar e me lembrei de fatos tristes da minha vida atribulada. No entanto, as lágrimas vieram com toda força quando me lembrei dos boletos vencidos, da geladeira vazia apenas com uma garrafa reaproveitada de vidro cheia de água, meus vestidos puídos no armário velho com trinco quebrado. Meu choro ganhou volume e eu comecei a soluçar. Eu pensava em quanto é humilhante para um ser humano ficar desempregado e como essas situações da vida podem ferir o coração de gente, como eu, trabalhadora. Uma dor sincera rasgava meu peito.
Minhas colegas carpideiras todas estavam chorando, cada uma ao seu modo. Os familiares, todos com roupas de tecidos chiques, as mulheres usavam salto alto, fizeram uma oração e quase todos continuavam com o rosto seco e olhar apático.
Uma das carpideiras era mais, digamos, dramática. Ela chorava e falava frases como: "mãe amorosa, avó amada, tia querida, que fará muita falta para todos". Às vezes, dava gritinhos.
Eu seguia chorando. Acho que abri as comportas da infelicidade que estava instalada há tempos no meu coração. A falta de dinheiro num mundo onde nada é dado e tudo precisa ser comprado humilha, espezinha a gente, como dizia minha saudosa avó.
Chegou a hora do enterro. O velório durou umas horinhas. Foi bem mais curto do que das minhas vizinhas de bairro, umas senhoras que eu conhecia desde criança, de famílias muito pobres.
Durante o enterro eu chorei ainda mais. Meu peito tremia. Nessa hora eu nem lembrava mais qual era a tristeza que eu estava recordando. Fui mergulhando dentro de mim mesma e parecia que eu não pararia nunca mais.
Quando tudo terminou fomos até a lanchonete do cemitério, na saída do estacionamento, tomamos um café, o meu foi cortesia, e recebemos discretamente nossos pagamentos em dinheiro entregues dentro de estreitos envelopes.
Fui elogiada pela nossa líder! Dona Eleanor disse que ficou impressionada, pois sabia que eu nunca tinha sido carpideira antes. Na família dela muitas mulheres eram, ela foi levada para velórios na barriga da mãe dela.
Sugeriu que eu seria chamada outras vezes, mas que eu devia prestar atenção para sempre atender o telefone. Ela falou para eu comprar, se possível, uma secretária eletrônica. Algo barato e simples que registraria as ligações recebidas quando eu não estivesse em casa. A melhor ideia que alguém me deu na vida. Agradeci.
A colega carpideira adoentada não conheci, morreu semanas depois que recebi a primeira ligação. Eu entrei definitivamente para o grupo e chorei muito no velório dela que deixou três filhos pequenos e um marido desolado. A tristeza era palpável. As colegas e a família estavam consternadas.
Nesse velório eu estava com uma cara triste chorando como devia ser, mas por dentro era só alegria. Eu havia ido em alguns outros velórios e pude comprar a tal secretária eletrônica e também fiz uma bela compra de mês.
Eu rezei para a alma da falecida estar ao lado do Senhor Jesus. Eu não torcia para ela morrer, mas confesso que esse fato mudou para muito melhor minha vida e de minha família.
Eu nem imaginava que ainda existiam carpideiras nos dias de hoje. Sabia que elas eram comuns lá época de Jesus.
Ahhhh, me lembro nitidamente da minha saudosa mãezinha olhando fundo nos meus olhos e me dizendo: "Filha, a vida é breve e a morte é nossa única certeza".