O famoso LYNE KITTY retornava de uma longa viagem em busca de cabeças para pendurar em seu cavalo. Com as cabeças em mãos, ele coleva as recompensas que não ousavam negar… Desde indígenas a homens brancos, ou homens pardos pelo castigo do sol, como ele… Almofadinhas, políticos patéticos, donos de prostíbulos, donos de bancos ou caça niqueis, cowboys, bandidos… Desde prefeitos corruptos ou desesperados foras da lei; qualquer um que apontasse um sujeito (seguido de um sussurro indicando o tamanho da fortuna); Lyne Kitty iria atrás deles e sem carregar muitas dúvidas… de que aquilo era só mais um trabalho e ele estava disposto a fazê-lo. Não se sentia invadido por dúvidas, culpas, questionamentos. Não conversava com Deus. Todas aquelas pessoas estavam prestes a cair. Lyne Kitty gostava do trabalho bem feito e foi o destino que o aproximou de sua pistola Colt e sua espingarda. Ele tinha uma meta… melhor dizendo: um código. Todos que caíam eram parte de um TODO que somente Lyne Kitty sabia qual era…
Lyne Kitty… que na verdade se chamava Winston Marshal D’Lyne… Era nada menos que um pai de DUAS crianças. Um menino chamado “Wiston”, assim como o pai e avô. E uma menina chamada “Lívia” (Liv). Eram irmãos gêmeos. Lyne era casado com Shandi. Uma descendente de indígenas e a única mulher que realmente amou na vida. Seu coração ficava morno ao imaginá-los eufóricos enquanto o viam de longe se aproximando com seu cavalo, após longas noites dormindo no meio do nada onde o frio era quase enlouquecedor e os perigos o espreitavam constantemente… entre sonos quase não dormidos e cochilos que se entrelaçavam com berros de susto… Eles estavam sempre em seus sonhos e pensamentos. Toda aquela matança… afinal, estava chegando ao fim. A meta era não precisar mais daquilo… nunca mais. Lyne Kitty tinha essa meta que poucos sabiam… Vinha juntando dinheiro e tinha quase o suficiente.
Tinha MATADO quase o suficiente para formar aquela quantia que sua família necessitava. O sítio onde moravam e cresciam, enfim seria propriedade deles… Não se tratava de uma meta cuja pistola podia simplesmente “apressar as coisas”… Lyne Kitty precisava apenas de um pouco mais de tempo…
O cavalo se aproximava da cidade… Kitty cochilava e roncava em cima do animal. Estava exausto…Ficando velho. Todos os músculos ardiam de cansaço e calor. Precisava ficar de olhos fechados por algumas horas, pois estava há meses fechando-os com pouca frequência. Ele ainda podia ouvir o barulho de tiros. O som de sua bota subindo as escadas de bancos, delegacias e bordéis… Ele escutava as vozes dos mortos, nos segundos finais. Ouvia-os em sua cabeça. “Nunca dizem nada de bom. Podiam até falar a verdade… Pedir perdão pelo que fizeram. Não faziam isso… Morriam despejando palavrões e maldições…Começavam a falar sem parar e meu primeiro tiro acertava suas bocas”; “Oh… Estou pensando?! Falando em voz alta? Estou gritando?! Ah… Será que estou ficando doente …? Shandi?! É VOCÊ?!”.
Despertou de seu sono inquieto: – Veja amigão! – Lyne Kitty deu alguns tapinhas no cavalo. – O PORTÃO!! Agora você vai deitar embaixo de uma árvore ou cocheira… Seus dias de corrida estão quase acabando, amigão. Kitty entrou na cidade… Parecia madrugada, mas ele sabia que era só meio-dia; a poucos minutos atrás no deserto o sol forte indicava o caminho. As nuvens ali cobriam o céu de tal forma que tudo ficava escuro. Ninguém na rua… Mas isso era normal em suas chegadas. Por mais que estivesse com a lei (ou não, apenas com “a maioria”) não tinha nada de considerado heroico no que fazia. As pessoas o temiam ou o odiavam. Ele só queria o dinheiro… as cabeças estavam com ele. As moscas os acompanhavam, provavelmente ele mesmo estaria cheirando pior do que elas. Ouviu um suspiro em seu pescoço, que era quase um sopro. Virou-se de vez com a mão no coldre, a cidade continuava vazia… Ninguém por perto… Desceu do cavalo e seguiu puxando, andando devagar e tentando observar a cidade… Queria encontrar alguma luz no interior das casas, um local pra dormir só mais um pouco. Mas, primeiramente… Falar com o Xerife. Sentiu um sopro atrás da orelha e se virou. Era um homem baixinho, que parecia ser muito velho… Ele vestia uma roupa vermelha que lembraria as vestes de um padre, caso fosse preta. Sorria largamente, parecia ser gentil, mas havia algo de insano… Como se nunca mais fosse parar de sorrir na vida.
– Eu trouxe as cabeças. Foi o que sua cidade pediu. O xerife e o prefeito mandaram as cartas… Estão todas aqui comigo. Me paguem… deixem-me tomar um banho e ir embora daqui. – O homem continuava sorrindo em silêncio.
– Você está atrasado Lyne Kitty. As pessoas já morreram…
– ISSO É IMPOSSÍVEL!!! – Estou com a cabeça dos assassinos AQUI comigo!! Se vocês foram “reduzidos” por qualquer outro motivo, o problema é de vocês e com seu bom Deus, meu amigo. Só quero meu pagamento. As cabeças e cartas ficarão aqui até que eu receba o pagamento e o recibo. E então todos ficarão bem. Senão…
– Se não…? Atirará nos mortos com sua pistola “Lyne Kitty”?
– Você… não está morto. Então, tenho UMA vida, que posso coletar.
Kitty então sacou a arma disparando tiros no peito do homem… que permaneceu em pé. Mas só um pouco mais sério do que antes… Tinha o semblante que indicava muito mais ironia (como se não compreendesse a falta de entendimento do pistoleiro) do que graça. Kitty pôde ver as balas o atingindo como pedrinhas batendo em saco de areia e caindo em seguida. Ficou tão perplexo que seus braços desceram o mais baixo que podiam… Seu rosto adquiriu um tom de infantil. Virou-se bruscamente como num susto e viu que seu cavalo não estava mais ali. “Quando foi que ele fugiu?!”. – Pensou.
– Me falaram dessas coisas, nunca acreditei… maldições…
– Amaldiçoaram esta cidade?
– Sim, Lyne Kitty, MALDIÇÕES EXISTEM e funcionam. Mas… Não, não é isso.
– O QUE É ENTÃO?!
– Digamos que… Esta cidade tinha um “débito” grande demais. As pessoas morreram, amigo. Os puros de espírito puderam fugir, só alguns… Somente os puros podem sair daqui. E de todas as maldições, acredito…
– “ACREDITA”?! Você então é um guia imprestável, mal sabe de coisa alguma.
– Ha ha ha…! Mas eu não sou um guia.
– Deve ser o próprio Diabo então…
De repente Kitty entendeu que precisava fugir dali, imediatamente. Com ou sem seu cavalo amado. E que não receberia dinheiro algum… Sentiu outra vez o sopro em sua orelha e virou-se assustado de novo, não podia evitar… Ele era como uma mosca. O homem misterioso continuava parado sorrindo.
– Olha, amigo. Não tenho malícias contra você e imagino que esteja só e enlouquecido de tanto ficar só. Posso oferecer carona em meu cavalo caso eu consiga encontrá-lo.
– Não acredito que você possa sair Lyne Kitty. Você não é puro de coração…
– Eiii!!! Eu não pertenço a esta porcaria de cidade!! POUCO VOCÊ SABE DE MIM!! Tenho…
– Sim, eu sei. Mulher e filhos. Eu sei, eu sei… Não é suficiente.
– MALDITO SEJA!! VOCÊ DEVE SER A MORTE OU O PRÓPRIO DIABO!!!
– Observe a cidade, pistoleiro. Quase todos aqui tinham esposas, maridos e filhos… Não foi o suficiente pra impedir que “Lyne Kitty” chegasse com toda sua “justiça”, carregando cabeças humanas e montado em seu cavalo… Não é verdade? Olhe em volta. Observe BEM esta cidade. Trata-se de sua nova casa.
Lyne Kitty correu e percorreu a cidade por todas as direções dando várias voltas, até que viu a entrada do banco pela oitava vez, exausto, quase por desmaiar… Sentou-se na sarjeta e ficou calado por longos minutos… Seu cavalo apareceu bem ao seu lado.
– Você precisa ir embora, amigão. Não tem comida aqui… Vai morrer de fome se ficar comigo… Vá pra casa! Eles entenderão que morri quando vê-lo sozinho… E então, você vai comer e dormir direitinho! Terá uma vida melhor. Terá sua rede… como eu te prometi… – Como se pudesse entender as coisas que Lyne Kitty dizia, o cavalo se virou e desapareceu.
Kitty continuou sentado. Sua calma voltou. Pela primeira vez em muitos anos ele tinha todo o tempo do mundo… Horas pela frente. “Talvez seja melhor que fiquem mesmo, sem mim… Será que eu pararia mesmo? Quem eu queria enganar…? Shandi sabia… Ah, ela sabia que eu não podia parar…”. As almas dos que se foram começaram a surgir, indo e vindo em volta de Kitty. O pistoleiro ainda estava vivo demais para vê-los com clareza total, mas podia senti-los. Até os inimigos perambulavam, mas ninguém se importava com o passado… “Quanto tempo pra eu morrer de fome…?Quanto tempo pra me deitar aqui e não ter forças pra levantar…?” E o velho…? De vermelho…? Pra onde ele foi…?!”.
Lyne Kitty se deitou com os joelhos pra cima, chapéu cobrindo todo o rosto. Assobiou um pouco… Chorar era um movimento que ele não compreendia mais; desde criança. Simplesmente não entendia mais, não conseguia mais. Sabia que tinha perdido de uma só vez, todas as coisas. Tinha acabado de perder tudo; suas armas, sua família inteira, seu cavalo. Pôs se a cantarolar uma canção que nem mesmo sabia que era capaz de cantar… Talvez nunca tivesse cantado na vida. Talvez viesse gravando na mente diversas canções, por toda vida…
– “Adeus, Joe, eu tenho que ir… Me oh, My, oh… (…) Eu tenho que ir, seguir com a canoa lá no pântano… minha Yvonne, a mais doce, oh, meu Deus… Me oh, My, oh…”.
– “Me… Oh… My, oh…”