Máximo respeito! 

 

Mais um dia sem água na escola, sem poder fazer merenda para as crianças. Nossa nova realidade. Tivemos que mandá-las pra casa. Nas ruas a arruaça da garotada e a infelicidade dos pais. Caminhei até em casa com a bolsa pesada de trabalhos para dar continuidade a este. A escola fedia a mijo. 

Na esquina me deparei com minha sobrinha se desvenciliando de um bode que  chifrava sua  bunda.  Com uma sacola de pão na mão,  distraia o robusto animal , jogando pães no chão. Até se abrigar na casa de uma vizinha. 

O bode já era conhecido. Pertencia ao Rabicha  , o chefe da boca de fumo do Fumacê, uma favela próxima às Casinhas onde morávamos. Ele indicava que o Rabicha estava por perto ou que haveria algum conflito entre facções de favelas rivais. Aumentei o passo para chegar logo em casa. Minha sobrinha fez o mesmo quando o bode se afastou. 

Logo que pus os pés no jardim e fui fechar o cadeado do portão já ouvi alguns disparos e ainda pude ver o Fiat Strada do Rabicha  em disparada pela minha rua com o bode na caçamba.  Pensei na criançada que estavam ainda na rua. Com certeza era a favela do Curral das Éguas atirando contra o Fumacê, os disparos estavam perto demais. Logo a polícia chegaria. Ou não.  E por que o Racicha estava no meio do fogo cruzado ? Só pelo bode ? Ele era um frequentador assíduo das Casinhas, sempre tomando uma cervejinha no trailer da praça.  Jogando conversa fora com a rapaziada. Ostentava um brinco de diamante numa orelha e o outro par estava fincado na orelha do seu bode de estimação. Não tinha nem trinta anos, magro e esguio. De uma beleza um pouco exótica sempre ornado por um cavanhaque bem feito no rosto. 

Cheguei a ouvir uma conversa dele no trailer uma vez , divagação sobre políticos corruptos a um grupo de jovens, não posso negar que ele tinha uma boa lábia mas ele não fazia parte de todo o esquema que questionava ? Ri comigo mesma. Mas ainda pude ouvir  uma garota sentada ao seu lado dizer:

- máximo respeito ! 

A idolatria  as vezes é  confusa. Os papéis estavam todos invertidos. 

Portão trancado, entrei pelos fundo, pela porta da cozinha para tentar não acordar meu esposo e meus netos  que ainda dormiam alheios aos tiros. 

E antes de fechar a porta e me sentir segura , vi um jovem pular do muro para minha casa. Um grito agudo saiu da minha garganta e foi logo abafado pelo olhar penetrante dele, com uma clock na mão e uma mochila na outra. Reconheci a arma pois meu marido tinha uma. O jovem estava nervoso e suava muito. Não apontava a arma para mim. Era apenas a extensão do seu corpo.

- tia, preciso sair daqui. Se o Rabicha descobre que tô nesta confusão com este material todo, ele me mata. Liga para um taxi para mim. 

- calma, guarda esta arma. Vou chamar.

Neste instante ouvi minha vizinha gritar que o BOPE estava na rua.

- não dá para sair assim. Vão revistar as casas.

- Mato a senhora e todos que estão aqui. Mas o que quero é  fugir mesmo.

Ele estava apavorado, era o típico PPP que eu ouvirá falar numa palestra do serviço social - Pequeno, Preto e Pobre.  Mas um rapaz aterrorizado. 

- como eu ia saber que teria conflito? Não levei a mercadoria ontem, fiquei numa festa bacana aqui nas Casinhas e adormeci. 

Vou pular lá por trás e pegar uma kombi na Estrada da Agua Branca. 

Toma, a senhora fica com isto, me indicando a arma.

- não, meu marido vai acordar, conta pra polícia. 

Ele abrindo a mochila me entregou dois pacotes grandes de um pó branco que deveria ser cocaína.  "E fica com isto também. Venho buscar mais tarde. Se o Rabicha não me matar "  

- não meu filho, meus netos estão dormindo, onde vou esconder isto ? 

Ele enfiou a arma e a cocaína na mochila, tirando um saco de supermercado de dentro.Olhei o conteúdo e tinha várias notas de 50 e 100 reais amarradas em elásticos.

- o que isto, meu filho ? Ele não me olhou só disse que com isto eu tinha que ficar, alguém com certeza buscaria e seria mais fácil de esconder da polícia.

E escalou o muro dos fundos da minha casa  para surpreender minha vizinha, seu portão dava para a estrada.

Os tiros cessaram, meu marido acordou. Os policiais entraram na minha casa. Eu estava atônita o tempo todo com a sacola de supermercado nas mãos. Uma vizinha fuxiqueira já estava no meu quintal falando com os policiais que vira o rapaz pular pra cá. Eu neguei. Só ela, que era uma juíza aposentada, colocou o olhar na sacola, mas não disse nada.

A calma voltou a reinar no lugar onde fora construído casas na década de 50 e ao longo do tempo foi cercada por favelas rivais. Tendo um dos lados composto de uma área militar que não se metiam em nada. Eu morava num quadrado muito peculiar, tres favelas e uma area militar .

Só a tardinha que chamaram no portão. Eu pude ver pela janela o bode com o brinco de diamante. Fui atender já com a sacola do supermercado. E me vi frente a frente com o Rabicha, que sorrindo perguntou se eu não tinha nada para ele.

Estendi a sacola e perguntei pelo rapaz. Que fiquei sabendo por minha sobrinha que viu minha vizinha dos fundo , de camisola e com os cabelos tingidos, na estrada parando uma kombi. 

- o mundo tá muito violento e as pessoas sem responsabilidades. Uns tem demais outros de menos. Temos que arcar com consequências. - não é  que aquele rapaz falava muito bem. Piscou o olho e apanhou a sacola. E eu em pensamento disse para mim mesmo.

- máximo respeito. 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 11/08/2024
Reeditado em 11/08/2024
Código do texto: T8126624
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