Trinta moedas

Era a primeira vez que chegava um circo na vila de Saudades do Iguaçu, distrito de Chopinzinho, sudoeste do Paraná.

A pequena Sueli, extasiada, acompanhou o desfile pelo centro da cidade, animais ferozes em suas jaulas, o imponente domador, o forte halterofilista e as lindas bailarinas fazendo acrobacias encantaram a menina, sem falar dos palhaços, alegres e zombeteiros, não poderia existir algo mais lindo e perfeito no mundo!

O arrebatamento da menina foi rompido por um estrondoso rugido do leão que aquietou a todos e fizeram suas perninhas tremerem.

Nesse momento, se lembrou da sua cachorrinha Lilica, que corria de lá pra cá e, também assustada com o rugido, entrelaçou-se nas pernas da menina.

Lilica era miscigenada, híbrida, como quase todos os cachorros dali, embora já adulta, era pequena, pelo duro e pardo, rabo fino e sempre pronta para correr e brincar.

Acompanhava a menina em quase todos os lugares, com exceções para a missa do domingo e a escola.

Mas, o encanto daquele desfile não saía da cabeça de Sueli, tornando-se uma fixação o desejo de assistir ao espetáculo e ver todos aqueles personagens encantadores.

A família era grande, ela era a penúltima antes da irmãzinha Yolanda de três anos, seguindo uma escala ano a ano até o irmão mais velho, João, já com 18 anos, era quem ajudava ao pai nas lidas da roça, completando assim dez irmãos e a mãe, dona Marlene.

Primeiramente, pediu ao pai, seu Alceu, se poderiam ir ao circo e recebeu resposta negativa, este afirmou que não tinha dinheiro para pagar o ingresso para todos, portanto, ninguém iria.

Enquanto matutava muitas formas de conseguir o dinheiro do ingresso, via os dias passando e o tempo de estadia do circo se esgotando.

Naquela noite ouviu o seu irmão João conversando com o pai, entre um trago e outro da cuia de chimarrão, na cozinha de casa, ao lado do fogão de lenha, este dizia que o pessoal do circo tinha interesses em alimentos que já não servissem mais para o consumo humano pra usarem como ração aos animais, afirmou também que o problema maior do circo era com o leão, pois comia muito e só aceitava carne fresca.

A família era pobre e não tinham, no momento, galinhas ou porcos para ajudar na alimentação da família, além disso, ela não se atreveria a pegar escondido alguma galinha ou alimentos da pequena dispensa para pagar o ingresso sem a autorização dos pais.

No dia seguinte, Dalva, uma das suas irmãs, um pouco mais velha, sugeriu em tom de brincadeira que ela poderia levar a Lilica para alimentar o leão e por certo ganhariam muito ingressos.

Sueli chorou, brigou com a irmã, tomou Lilica nos braços e saiu.

Mas, o tempo foi passando e apesar da sua criatividade, não encontrou uma outra forma de pagar o ingresso.

Faltavam dois dias para se encerrarem as apresentações. Naquela noite ela não dormiu, virava-se na cama, teve pesadelos e viu a lua descer no céu até o arrebol dar espaço para um dia que nascia ensolarado...

Levantou cedo, com o coração apertado, tomou Lilica nos braços e foi até o circo, vendo o porteiro organizando cadeiras para a apresentação da sessão da tarde, aproximou-se e mostrou a amiguinha, perguntando em soluços, quantos ingressos ela valeria se fosse trocada para a alimentação do leão?

Sorrindo o porteiro lhe respondeu que não valia nenhum ingresso, pois os animais do circo não comiam animais de estimação.

Sueli voltou para casa com um gosto amargo na boca, as lágrimas escorriam pela face, o remorso lhe rasgava o coração, a própria Lilica, em silêncio parecia acusar o golpe.

Naquela tarde o pai voltou um pouco mais cedo para casa, ainda sujo do trabalho diário, reuniu toda a família e alegre, revelou uma surpresa, havia trabalhado o dia todo no circo, fazendo limpezas e pequenos reparos, de modo que tinha ganhado ingressos para todos na sessão da noite do último dia de apresentação.

Aquela era uma noite rara e de grande festa para a família, com a melhor roupa foram ao circo, Sueli usava um vestidinho de cambraia azul e uma blusinha branca, meias azuis e alpargatas pretas, Lilica ficou trancada em casa.

A apresentação foi extraordinária, os atores e os animais levantaram a plateia com suas peripécias e trejeitos, sem contar o show de luzes e fogos de artifício.

Mas, Sueli não se empolgou tanto, percebeu que o leão mancava de uma perna, a lona do circo era remendada, o palhaço não parecia feliz, a camisa do domador era curta e não cobria a sua grande barriga e até a pipoca colorida vendida nos saquinhos brancos era cheia de piruás.

A noite estava fria em junho de sessenta e oito.

Kleber Versares
Enviado por Kleber Versares em 28/06/2024
Reeditado em 30/06/2024
Código do texto: T8095479
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.