Ars Gratia Artis

As pessoas de minha família dizem que me pareço mais com meu avô do que com meu pai. Mas não fisicamente, e sim em termos de inteligência, coisa que meu próprio pai reconhece. Nessa história, algo que não aconteceu comigo, mas com vovô, é que ele passou muita necessidade quando criança lá no nordeste. Com esforço conseguiu estudar, veio para Brasília, terra das oportunidades como ele mesmo diz, onde arranjou um bom trabalho no Congresso Nacional através de uma empresa terceirizada de um conterrâneo dele bem-sucedido na capital. Mesmo tendo de dar boa parte do salário para seu chefe, rachadinha é coisa antiga no serviço público, conseguiu juntar um bom dinheiro. Depois passou num concurso oficial e bem mais tarde, atuando nos bastidores, enriqueceu durante o mensalão e o petrolão.

Apesar de ainda ter alguma influência na capital federal, ficou magoado e reclamou com as autoridades incompetentes que não o convidaram para participar do recente arrozão, que afinal acabou não dando certo mesmo porque deu muita bandeira. Sorte dele que não saiu queimado, meu avô, não o prato de arroz. Mas parece que vem outro ótimo negócio desse grão por aí ainda neste ano e certamente dessa vez ele será lembrado na ocasião propícia, conforme lhe garantiram.

Aposentado e viúvo há algum tempo já, ele nem precisava se enfiar nessas maracutaias para ganhar mais dinheiro, foram palavras que meu pai falou a ele. Disse-lhe ainda que ele deveria continuar viajando pelo mundo, como vinha fazendo até o ano passado, gastar um pouco mais de sua fortuna conhecendo novos países e suas culturas. Ele tem boa saúde, tempo e dinheiro não lhe faltam.

Ele sempre viajou muito aqui dentro e também pelo exterior. E toda vez que voltava para casa trazia presentes e lembranças inesquecíveis para todos. Também para si próprio, claro. Em sua viagem mais recente, quer dizer, a do ano passado, primeiro ele esteve no Egito onde, entre outras coisas, quase comprou de um rico beduíno, a bom preço, uma pirâmide desmontável e de dimensões reduzidas, jazigo de um pequeno faraó, morto aos cinco anos de idade. Desistiu, porém, pois o transporte até sua mansão na capital federal custaria uma fortuna, valor muito superior ao preço daquela pequena maravilha construída ainda nos tempos bíblicos. Além do que ele já participava de algumas pirâmides financeiras aqui mesmo então achou melhor se envolver com outras arquiteturas e culturas.

Sua parada seguinte foi na Itália, e lá no Vaticano, como ocorre com todo bom comunista, especialmente os brasileiros, foi recebido e abençoado por Sua Santidade, claro. Dele ganhou um pequeno mas belo crucifixo. Segundo o sumo pontífice o mesmo fora feito com um pedaço da cruz onde nosso Salvador foi crucificado há mais de dois mil anos. Portanto uma peça de inestimável valor não apenas religioso, também histórico. Imaginem a fortuna que esse crucifixo deve valer e a imensurável satisfação do vovô por ter recebido tal presente em troca de uma camisa da vergonhosa seleção brasileira de 2014 que ele ofereceu ao papa.

Em Roma, propriamente, na porta do Capitólio, um senhor muito fino mas falando um inglês macarrônico, que se apresentou ao meu avô dizendo ser um especialíssimo antiquário, ofereceu-lhe uma antiquíssima caixa de fósforos, um tanto diferente das atuais, claro. Ela teria sido uma das três usadas pelo imperador Nero para tocar fogo na cidade lá pelo ano 64 d.C. Meu avô se recusou a comprá-la não apenas pelo absurdo preço pedido pelo antiquário, também porque um caixa de fósforos vazia, ou seja, sem os fósforos, mesmo que tivesse pertencido a Marco Antonio ou a Júlio César, não teria tanto valor histórico, porque artístico não tinha nada, que era muito tosca, não valia o preço pedido.

Em seguida, contou-me vovô, o antiquário tirou do bolso de sua jaqueta uma ferradura de prata bastante gasta, um pouco deformada até, que lhe ofereceu dizendo ter ela sido usada na pata dianteira esquerda de Incitatus, o cavalo senador do imperador Calígula. Era mais antiga ainda do que a caixa de fósforos de Nero, portanto, muito mais valiosa e cara. Como era da pata esquerda, não da direita, já que ele era eleitor dos progressistas, seus amigos do governo, aí meu avô não resistiu e mesmo tendo pagado uma nota preta por ela, pensou que seria um excelente objeto, como os demais adquiridos em cada uma de suas viagens, para deixar de herança para alguns de seus familiares. Assim, espero que vovô morra logo, mas antes, em testamento, deixe essa ferradura de prata para mim.

Estando na Itália e tendo um acurado senso histórico e artístico é claro que meu bom velhinho não poderia deixar de ir a Florença, a cidade onde viveram grandes representantes do Renascimento italiano, ícones culturais no mundo todo. De lá ele trouxe uma porção de lembranças valiosíssimas e só não comprou mais coisas porque estava ficando cansado de carregar tantos pacotes, quando poderia ter contratado um carregador, mas me disse que ficou com receio de que o mesmo pudesse fugir com todos os seus tesouros adquiridos a altos preços, no que ele tinha toda razão. Afinal, diferentemente do Brasil, a Itália é uma terra de perigosos mafiosos, não?

Altíssimo preço ele pagou por uma pena que Maquiavel usou para escrever sua obra-prima, O Príncipe, assim como por um cinzel que Michelangelo usou para esculpir Davi, aquele baixinho que venceu o gigante Golias, e um pincel usado por Rafael Sanzio para pintar a Madona e o Menino, entre outras valiosíssimas peças históricas e artísticas adquiridas naquela estonteante cidade florentina, como vovô a chamava. Mas a cereja do bolo dessa riquíssima viagem cultural, que não terminou em Florença, mas eu preciso ir terminando em seguida, foi a compra de um retrato da filha da Gioconda, a Mona Lisa vocês sabem, pintado por um neto do grande Leonardo da Vinci, de quem ela teve um filho, daí o sorriso enigmático das mulheres de sua família.

Estive recentemente na mansão de meu avô e vi esse quadro maravilhoso ao lado de outro que, até a compra feita por ele, permanecia inédito no mundo dos tesouros artísticos mundiais e vai permanecer praticamente assim porque vovô não faz propaganda de suas aquisições históricas e artísticas. Por essa pintura ele pagou outra pequena fortuna: não eram girassóis, mas algumas tulipas murchas que Van Gogh e Picasso pintaram juntos quando o solidário pintor espanhol visitou o colega holandês em Arles. Foi depois de Van Gogh ter cortado uma orelha ao fazer a barba distraidamente após uma noitada de tremenda bebedeira em companhia de algumas prostitutas francesas, como lhe informou o vendedor da pintura.

E finalizando, não pensem mal de mim, pois apesar de desejar que vovô morra logo – numa queda de avião, por exemplo já que ele viajava bastante e incentivado por papai vai retornar à Europa em breve, uma morte que seria praticamente indolor, acho – e assim eu ser beneficiado com parte de sua herança, espero que ele viva muitos anos ainda, viaje muito e continue adquirindo outros valiosíssimos bens mundo afora. Pena que ele nunca me convidou para acompanhá-lo em suas viagens, não sei a razão, também nunca perguntei. Mas se ele deixar a cobiçada ferradura do cavalo de Calígula para mim já estará muito bom. Adoro burros, quer dizer, cavalos...