Água de beber (Ou Aquele Homem)
Ele chegou no horário combinado para montar os móveis. Magro, sério, estatura média, com olhar entristecido, aparência pálida e pele do rosto envelhecida, apesar de talvez não ter muita idade, cabelo preto ralo escovado para trás e óculos de armação também preta, desbotada. Usava um velho relógio de pulso e tinha apenas uma tatuagem antiga no braço, quase um borrão.
Quem o indicou foi uma ex-vizinha que havia se mudou para Santana, aqui na zona norte, e que o recomendou como um bom profissional. Combinei a data e o preço do serviço com ele por telefone. Quando ele chegou fiquei aliviada, pois eu precisava muito de alguém que finalmente fizesse o serviço, queria minha sala arrumada, meu cantinho de leitura, com luminária e a poltrona, minha escrivaninha, lugar da casa que eu amo arrumado. Depois eu mandaria as caixas de papelão vazias para reciclagem. Queria ver minha sala , um lugar da casa onde eu passava muitas horas, finalmente pronta.
Ele começou a ajeitar as ferramentas para começar a montagem e logo eu ofereci um café fresco. O dia estava nublado. Ele havia chegado uns cinco minutos antes do horário combinado, eu valorizava pontualidade, trouxe todas as ferramentas, parecia uma pessoa prática. Eu fiquei aliviada.
Enquanto ele tomava o café quentinho comentei com ele sobre a vizinha que o indicou para o serviço e que ela afirmou que o conhecia há tempos. Ele respondeu que a conhecia há décadas, que ela tinha visto os filhos dele crescerem.
O meu comentário foi a deixa para ele contar sobre a vida, eu adoro escutar histórias , mas nesse caso me arrependi de ter comentado sobre nossa conhecida em comum. Ele falou que era separado e tinha três filhos. Disse também que atualmente ele morava agora com um primo, tio ou algo assim. A conversa poderia ter parado por aí, mas avançou. Não sei bem como chegamos ao ponto que ele contou que é satanista. Eu fiquei tão surpresa que pensei que tivesse entendido errado.
Fiz cara de espanto, eu sofro de incontinência facial, não consigo esconder o que penso mesmo quando fico em silêncio. Ele me olhou quieto, apenas observando.
Ele pediu para repetir o café no copo americano e contou que a ex-mulher o deixou, foi embora com outro, o amante dela , um filho saiu de casa sem se despedir dele e ele não sabe até hoje onde mora , a garota tinha "virado" prostituta e o caçula, por quem ele tinha era louco de amor, tinha se envolvido no crime e estava preso.
Fiquei olhando para ele paralisada sem ter o que responder. Não queria ser grosseira e na hora não consegui encontrar o que dizer. Ele poderia ter feito todo o serviço quieto, não interagir, não gostar de café, sei lá.
Coisa rara, eu fiquei sem palavras.
Ele de forma muito direta e com cara de desalento disse:
- Não acredito em mais nada. Tenho filhos, mas é como se eu não tivesse tido nenhum. Minha filha é puta eu nunca vou perdoá-la, meu filho que sumiu sei que não volta, acho que é gay, parece que está morando com o namorado e o meu caçulinha vai demorar para sair da cadeia.
Eu fiz um sinal qualquer com a cabeça e pedi licença para fazer uma ligação. Eu queria sair de perto dele com receio que ele, enquanto trabalhava, me contasse mais detalhes de uma história de vida, digamos, complicada.
Mandei mensagem para minha filha dizendo que estava acontecendo. Ela respondeu:
- Melhor pessoa, mãe, pelo menos não é hipócrita.
Minha filha sabe que sou uma pessoa de muita fé em Deus, que dá importância para a vida espiritual. Ela era uma o garota bem humorada e sincera. Eu não podia reclamar. Eu havia a educado e sabia que ela dizia o que sentia.
Não escrevi mais nada. Deixei o celular de lado e fui regar minhas plantinhas.
Ele era caprichoso, fez o serviço de montagem e seguida recolheu toda a poeira resultado do uso de uma furadeira. Pediu um pano de chão, deixou tudo limpo.
Ele não me parecia uma má pessoa. Ele era muito seco, direto, sem ser ríspido, falava baixo, parecia concentrado, tinha um olhar perdido, um rosto endurecido, como se não sorrisse a milênios, ele era estranho, ou melhor, ele era muito diferente do que eu estava acostumada e olha que eu conhecia muita gente.
Ele havia sido indicado por uma vizinha que eu sabia que gostava de serviços bem feitos, ele cobrou um preço justo, era organizado. Eu não tinha do que reclamar. Eu estava desconfortável era verdade, mas não queria ser injusta, não sou juíza, cada um sabe o que sente no coração. Eu nunca tinha conhecido com alguém como ele. Eu era cercada por pessoas religiosas de várias vertentes e a convivência era harmoniosa, havia também colegas e vizinhos ateus e agnósticos, na família cada um respeitava a fé do outros, não tinha embate. Eu estava acostumada em receber amigas ,amigos e amigues da minha filha e meus em casa. As pessoas desabafavam comigo ou pediam conselhos, mas nunca eu havia escutado alguém tão amargurado, ele parecia que usava uma armadura invisível de proteção. Parecia alguém muito machucado ao mesmo tempo inflexível. Não consigo achar palavras para descrevê-lo e isso me deixou pensativa.
Ele me avisou que tinha acabado o serviço. Fiz o pagamento e o acompanhei até o portão, vi o carro dele partindo e entrei para casa.
Pensativa sentei no sofá com um pouco de café quentinho. Fiquei imaginando as voltas que a vida pode dar. Eu talvez nunca mais o visse, mas sabia que não esqueceria daquele rosto e das palavras ditas por ele.
Ninguém podia afirmar nesse mundo: "dessa água eu não beberei", ou meu filho jamais faria isso ou aquilo. Minha família é de tal jeito, não controlamos nada nessa vida, mas talvez esse seja o mais fascinante da nossa existência humana.
As palavras dele não saiam da minha cabeça. A filha ele nunca perdoaria. O filho supostamente gay também não merecia nada, mas o filho bandido ele receberia de braços abertos quando cumprisse a pena.
Peguei um café no meu copo preferido, sentei na sala agora pronta, peguei meu diário, papel e caneta e anotei cada palavra que eu lembrava da nossa conversa.
Eu não sei, mas essa história acho que vai virar poesia um desses.
Quem sabe.