O OLEIRO

O homem, seu sonho, a argila fresca e maleável.

Som de passos ligeiros ... Chega quem posará como modelo. Silenciosa, ela o saúda com um gesto; ajeita o cabelo revolto; senta-se diante dele e apenas espera.

O homem se dedicará em substantificar o sonho. Suas mãos cuidadosas serenamente se movem, experimentando o primeiro gesto da elaboração. Trabalhará em uma escultura, cujo processo é uma sombra que já o enleva e atormenta

Mente e coração orientando o esboço o farão avançar de miragem à coerência.

Ele trabalha; o pensamento voa, enquanto seus olhos percorrem o semblante querido, que ele delineia na argila.

Havia sido um acordo. Ela queria ouvir dele toda a história de vida, suas viagens, suas performances na arte...

Ele propusera a troca: Conto tudo com detalhes: - Você posará para meu próximo trabalho!

Ela tímida e admirada: - Porque eu? Sou sua filha... Não será desusado?

- Está enganada, lembre-se: Johannes Vermeer, usava as filhas como seus modelos...

Ambos cumprem o que se propuseram. Ele narrando fielmente a parábola de sua vida. Suas buscas, projetos, duvidas, inconsequências, perdas, conquistas, criações...

Ela disponível, atenta, primorosa, branda às exigências do artista insatisfeito, repetitivo, detalhista, instigante.

O ceramista orienta: -Seja natural, tranquila, espontânea!

Ela coloca as mãos sobre os joelhos.

Ele reconhece no gesto, assim como na mecha de cabelos que lhe caí na testa, livre de qualquer domínio, herança da mãe, cuja ausência lhes pesa, dolorosa, nos corações.

Acumulam-se nas prateleiras, cabeças, rostos em diferentes expressões, joelhos flectidos... mãos sugerindo movimento, quietude, abandono... múltiplas composições corporais, frutos do trabalho infatigável de muitos dias.

Depois que ela se vai, ele percorre com os olhos o disparatado conjunto sobre a prateleira, cujo sentido só ele percebe. Deve acender o forno para fazer a queima, escolhidas as melhores peças...Tem trabalho na oficina ainda por horas.

Pensa na filha; que, nesse momento, debruça-se sobre seus livros de estudo. Preparada para cumprir sua vocação, brevemente partirá para longe dedicando-se ao exercício da medicina. Vai atuar na Médicos Sem Fronteiras onde a espera a árdua tarefa da medicina humanitária, a que ela se entregará com excelência, obedecendo à sua natureza pródiga.

Enquanto ordenadamente trabalha, o oleiro reflete sobre o tempo, ciente de que para ambos, pai e filha, esse fator se distingue de forma diferente, ainda que a urgência seja comum aos propósitos de cada um: ela tem pressa em seguir seu caminho, quer praticar a ciência usando seus conhecimentos, minorar dores, curar os males humanos, lutar contra o impossível na tentativa de devolver a vida a muitos daqueles a quem a morte já bafeja.

Ele se apressa porque sabe estar muito próximo o fim de seus dias. Esse fato ainda inconfesso para todos, o faz dedicar-se sem repouso ao labor de realizar seu derradeiro sonho.

Ela partirá em breve, inconsciente do mal que o devora. Irá sem saber, que o último abraço que trocarão na partida, será, desgraçadamente, o derradeiro de todos os abraços de suas vidas.

E, quando, publicamente for noticiada a sua morte, ela a receberá à distância, estupefata, surpreendida, onde quer que se encontre.

Retornará para as exéquias. Na câmara mortuária, revendo-o, ela, inconsolável, beijará com carinho as suas mãos inertes.

Cumpridos os compromissos finais do inelutável, ela, prestes a retornar aos seus deveres, com certeza irá à oficina, onde se surpreenderá, encontrando perfeitamente executada, a escultura delineada à sua imagem.

Ele detém suas reflexões.

Lembra-se que, apesar de sua debilidade e do seu sensível declínio, o trabalho deverá ser executado com o requinte que o seu sonho exige.

Assim sendo, para aliar as composições ora esculpidas num único bloco, deverá usar as técnicas e processos de sua arte, a memória sensorial, a grandeza da paciência e da perseverança.

Entretanto, seu corpo enfermo anseia por repouso.

Afasta-se penosamente da bancada de trabalho. Acaba de lembrar-se de algo que deve completar a extensa narrativa feita à filha, atendendo à sua curiosidade de conhecer seu passado.

De uma gaveta tira o pesado álbum de fotos, encapado em couro, que guarda as imagens de sua vida, todo o seu desdobramento, estudo, viagens, trabalhos, conexões com parceiros, apresentações artísticas, festejos, premiações...

Seus olhos insones deslizam pelas páginas do álbum; ele recorda, saudoso, buscando trazer de volta emoções esquecidas, tragadas pelo tempo.

Então, escreve na contra capa do álbum, o que transborda do seu coração:

Querida filha,

Este álbum completa com suas exposições, o que oralmente lhe narrei da minha história. As impressões fotográficas comprovarão a substância de fatos, que a minha memória enfeitou indevidamente, ou subverteu.

Diante de você brevemente se abrirão os seus caminhos. Percorra-os com dignidade. Seja luz por onde seus passos transitarem. Cumpra fielmente os deveres de sua profissão; lembre-se dos juramentos e das promessas. Suas mãos hábeis e sua intuição contínua oferecerão o socorro imediato aos necessitados. Ouça-os, ampare-os. conforte-os. A dor dos humanos nem sempre é passível aos medicamentos, mas sim à misericórdia, sim à atenção do médico que os assiste. Que brandura e paciência perdurem no seu dia-a-dia. Use sua sabedoria e conhecimento, sem perder a humildade. Seus dias serão trabalhosos, suas noites, muitas delas, transcorrerão sem o merecido descanso, mas a coragem vencerá a fadiga, o desânimo, até mesmo a dor dos membros exaustos.

Não se deixe vencer por obstáculos advindos das maquinações do sistema e falhas da ciência mal interpretada; não julgue a ignorância, a negatividade, a fatuidade do teu próximo. Esqueça a incompreensão, a ingratidão de muitos e lembre-se perenemente de usar o perdão. A você mesmo não faltarão fraquezas, reconhece-as, e tente ser melhor. Perdoe-se. E ao perdoar-se, por extensão perdoe a mim, seu pai e criador, que por mais que a tenha amado e protegido não logrou escapar da imperfeição.

Sobraçando o álbum, apaga as luzes da oficina; dirige-se à porta da saída; a aragem fria da noite o envolve e ele estremece.

Raras estrelas brilham no horizonte noturno. Sobre os montes distantes, róseas nuvens anunciam a madrugada. Driblando o cansaço e a dor latejante, ele, corajosamente, se encaminha em direção ao sol nascente.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 02/06/2024
Código do texto: T8077129
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