Tesão
Acordou tendo a certeza de que seria o último dia que dormiria naquela cama. Há quantos anos dormia ali, noite após noite, com raríssimas exceções de sonos mal dormidos em outras camas? Vinte e cinco anos. E quantas noites poderiam ser classificadas como noites felizes, manhãs bem acordadas? Não saberia precisar. Não era uma cama de casal assim como sonhara ser um dia, quando a comprara. Era apenas uma cama onde dois desconhecidos dormiam juntos por força do hábito, cada qual se esgueirando noite após noite para a sua beirada, para não encostar um no outro. Mas agora isso ia ter fim. Esta seria a última noite.Esperaria o marido se levantar e ir como de costume para o trabalho. Ficaria ali fingindo dormir, mesmo que ele fizesse todo o barulho possível com o intuito de acordá-la. Dormiria feito pedra até ele sair e depois se levantaria. Calma e tranquilamente, pela última vez se levantaria e arrumaria a cama. E depois iria até a cozinha tomar pela última vez o café que de má vontade ele teria feito, comer o pão amanhecido com manteiga. Deixaria a cozinha limpíssima, como sempre,depois iria até o banheiro para o último banho e quando saísse dali levaria com ela todos os seus objetos de uso pessoal. Então voltaria ao quarto para arrumar a mala. Não levaria muita coisa, aos poucos já se desfizera de roupas que não usava. Só o essencial, roupas, as poucas jóias que tinha, alguns livros , discos, lembranças dos filhos.
Ah, os filhos! Os filhos não voltariam mais para aquela casa, já tinham saído à procura de seus próprios caminhos. Mesmo assim sabia que seria difícil, eles não compreenderiam. Para eles os pais eram perfeitos e viviam um casamento feliz. Como poderia ela dizer a eles que o casamento tinha acabado mal havia começado? Como dizer a eles que um dia, há muito tempo atrás, mal o último deles acabara de nascer, quando ela se aproximara do marido buscando aconchego ele simplesmente dissera: Desculpe, não sinto mais tesão por você, não sinto mais tesão por ninguém, e ela fingira acreditar.Humilhada, preferira fingir que tudo era normal. Não questionara,não brigara,não lutara. Então a vida continuou e enquanto o marido florescia, ela murchava.E assim os anos passaram, ela aceitando por achar que era sua obrigação, fingindo acreditar que ele não tinha uma outra vida na rua. A vida parecia normal para todos. Os filhos pareciam felizes, cresciam dentro da normalidade, ele era gentil com ela, nada faltava em casa. Mas à noite, ele sempre buscava o seu lado da cama onde ficava bem longe dela, sempre de costas, fingindo não perceber suas noites de agonia. E assim foi, noite após dia, anos após meses. Ela não engordou nem ficou anoréxica, mas seus olhos perderam o brilho e ela se acostumou a andar pelas ruas de cabeça baixa como se fosse uma aberração da humanidade. Mas, um dia...Ela não se esquece desse dia, embora não saiba explicá-lo. Tinha saído bem cedo, como de costume, ia a feira, como era condizente com seu papel de dona de casa eficiente. Nem havia percebido como estava o tempo, nem que tempo era..Andava olhando os pés como se ali fosse encontrar o segredo da vida. Mal percebeu as rodas metálicas de um carrinho de mão que parava junto dela. Levantou a cabeça quando ouviu a voz:ô dona, é a senhora que ta cheirando bem assim ou é a primavera? O homem ria para ela com sua boca desdentada, o rosto macilento, a barba crescendo desajeitada, as roupas simples mas muito limpas. Conduzia um carrinho onde coletava latas de alumínio descartadas pelos bêbados da noite. Falou, sorriu e continuou o seu caminho, sem dizer mais nada. E pela primeira vez em muito tempo ela continuou o seu percurso de cabeça erguida e sorriso nos olhos.
Seria preciso um bom psicólogo para me explicar isso,pensou enquanto o marido se levantava, fazendo o maior barulho possível, tropeçando nos sapatos, acendendo a luz, resmungando, tudo para fazê-la acordar.Mas ela não acordaria. Continuaria ali, fingindo dormir, relembrando do último ano. Não, ela não engordou nem emagreceu,não mudou o jeito de se pentear nem de se vestir. Mas levantou a cabeça e seus olhos voltaram a brilhar. O que está acontecendo com você?, perguntara ele, perguntaram todos.Nada, ela dizia, nada . Ele voltara a procurá-la na cama e ela pudera enfim dizer:eu não sinto mais nenhum tesão por você. Mas não fizera como ele, não mentira, nunca diria não sinto mais tesão por ninguém porque ela sentia um imenso tesão pela vida e agora estava pronta e preparada para viver.
Acordou tendo a certeza de que seria o último dia que dormiria naquela cama. Há quantos anos dormia ali, noite após noite, com raríssimas exceções de sonos mal dormidos em outras camas? Vinte e cinco anos. E quantas noites poderiam ser classificadas como noites felizes, manhãs bem acordadas? Não saberia precisar. Não era uma cama de casal assim como sonhara ser um dia, quando a comprara. Era apenas uma cama onde dois desconhecidos dormiam juntos por força do hábito, cada qual se esgueirando noite após noite para a sua beirada, para não encostar um no outro. Mas agora isso ia ter fim. Esta seria a última noite.Esperaria o marido se levantar e ir como de costume para o trabalho. Ficaria ali fingindo dormir, mesmo que ele fizesse todo o barulho possível com o intuito de acordá-la. Dormiria feito pedra até ele sair e depois se levantaria. Calma e tranquilamente, pela última vez se levantaria e arrumaria a cama. E depois iria até a cozinha tomar pela última vez o café que de má vontade ele teria feito, comer o pão amanhecido com manteiga. Deixaria a cozinha limpíssima, como sempre,depois iria até o banheiro para o último banho e quando saísse dali levaria com ela todos os seus objetos de uso pessoal. Então voltaria ao quarto para arrumar a mala. Não levaria muita coisa, aos poucos já se desfizera de roupas que não usava. Só o essencial, roupas, as poucas jóias que tinha, alguns livros , discos, lembranças dos filhos.
Ah, os filhos! Os filhos não voltariam mais para aquela casa, já tinham saído à procura de seus próprios caminhos. Mesmo assim sabia que seria difícil, eles não compreenderiam. Para eles os pais eram perfeitos e viviam um casamento feliz. Como poderia ela dizer a eles que o casamento tinha acabado mal havia começado? Como dizer a eles que um dia, há muito tempo atrás, mal o último deles acabara de nascer, quando ela se aproximara do marido buscando aconchego ele simplesmente dissera: Desculpe, não sinto mais tesão por você, não sinto mais tesão por ninguém, e ela fingira acreditar.Humilhada, preferira fingir que tudo era normal. Não questionara,não brigara,não lutara. Então a vida continuou e enquanto o marido florescia, ela murchava.E assim os anos passaram, ela aceitando por achar que era sua obrigação, fingindo acreditar que ele não tinha uma outra vida na rua. A vida parecia normal para todos. Os filhos pareciam felizes, cresciam dentro da normalidade, ele era gentil com ela, nada faltava em casa. Mas à noite, ele sempre buscava o seu lado da cama onde ficava bem longe dela, sempre de costas, fingindo não perceber suas noites de agonia. E assim foi, noite após dia, anos após meses. Ela não engordou nem ficou anoréxica, mas seus olhos perderam o brilho e ela se acostumou a andar pelas ruas de cabeça baixa como se fosse uma aberração da humanidade. Mas, um dia...Ela não se esquece desse dia, embora não saiba explicá-lo. Tinha saído bem cedo, como de costume, ia a feira, como era condizente com seu papel de dona de casa eficiente. Nem havia percebido como estava o tempo, nem que tempo era..Andava olhando os pés como se ali fosse encontrar o segredo da vida. Mal percebeu as rodas metálicas de um carrinho de mão que parava junto dela. Levantou a cabeça quando ouviu a voz:ô dona, é a senhora que ta cheirando bem assim ou é a primavera? O homem ria para ela com sua boca desdentada, o rosto macilento, a barba crescendo desajeitada, as roupas simples mas muito limpas. Conduzia um carrinho onde coletava latas de alumínio descartadas pelos bêbados da noite. Falou, sorriu e continuou o seu caminho, sem dizer mais nada. E pela primeira vez em muito tempo ela continuou o seu percurso de cabeça erguida e sorriso nos olhos.
Seria preciso um bom psicólogo para me explicar isso,pensou enquanto o marido se levantava, fazendo o maior barulho possível, tropeçando nos sapatos, acendendo a luz, resmungando, tudo para fazê-la acordar.Mas ela não acordaria. Continuaria ali, fingindo dormir, relembrando do último ano. Não, ela não engordou nem emagreceu,não mudou o jeito de se pentear nem de se vestir. Mas levantou a cabeça e seus olhos voltaram a brilhar. O que está acontecendo com você?, perguntara ele, perguntaram todos.Nada, ela dizia, nada . Ele voltara a procurá-la na cama e ela pudera enfim dizer:eu não sinto mais nenhum tesão por você. Mas não fizera como ele, não mentira, nunca diria não sinto mais tesão por ninguém porque ela sentia um imenso tesão pela vida e agora estava pronta e preparada para viver.