HÉGIRA

Pensava que era noite alta quando me despertara, apertando os lençóis com a mão direita orvalhada de suor e com a esquerda limpando minha fronte de qualquer sujeira que tivesse se atrevido em meu olhar, mas estava bastante enganado.

Os halos de luz que se faziam presentes em frente à janela, refletindo no grande espelho de meu quarto, denunciavam o sol, e o calor não habitual das noites friorentas daquela região colocavam o meu relógio mental numa aposta de que fosse entre oito e nove da manhã de um domingo.

O espelho e as sombras que o sol criava denunciavam um corpo em pé na minha cabeceira, cheio de vida e com longos cabelos... Demorei a reconhecer minha mãe, vestindo roupas simples e surradas que ela usava sempre antes de se recolher aos canteiros de tomates que enfeitavam nosso jardim.

Mas, a essa hora, já era para ela estar docemente perfumada e me convidando para o generoso café da manhã. Era no mínimo estranho que o cheiro de terra molhada estivesse presente no ar do quarto, trazendo para o calor e pouca circulação aérea um doce aroma de tomates maduros.

Resolvi cortar a tensão que se criara no ambiente:

- O que está fazendo, a esta hora, em minha cama?

O aperto em um dos lábios, forte e tenso, denunciara uma leve retraída. Ela falara rápido, mas ainda havia entendido a pressa em seus verbos e como era urgente a situação.

- Preciso que venhas comigo, filho.

Na minha mente não houve regalias para certezas, mas muito menos para indagações. O calor me desanimava, e só agora que uma corrente de ar fresco saia da janela à minha direita e inundava meu corpo de uma sensação aliviadora. Não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que minha mãe falava sério.

Depois dessa pausa mental não muito rara, pensei em algumas possibilidades, tudo durante uma fração de segundo. Talvez houvesse um horrendo rato na cozinha, ou no jardim. Talvez o nosso gato Fred estivesse morto e estirado em algum lugar da casa, causando pânico e terror. Talvez uma de nossas caras e estimadas louças tivesse caído e quebrado no meio do chão da sala de estar, o que para minha mãe seria igualmente perturbador.

- Preciso que venha.

- Tudo bem.

Me sentei na cama em um salto, tonto ainda de sono, e vendo as gotas de suor em meu corpo secarem conforme o vento vindo da janela envolvia meu tórax e pescoço com seu frescor. Mirei uma camisa que estava atirada no canto da cama, e a vesti rapidamente. Apenas dera um bocejo e me levantara, sorrindo para a senhora que estava em pé na minha frente, com um tímido sorriso no rosto.

Foi esquisito o que se passara. Tive a impressão, olhando pela janela, que por um segundo a forte luz e o calor da manhã que inundava o quintal havia se transfigurado em trevas, que a grande mangueira em frente aos canteiros de salsa havia se tornado seca e com os galhos retorcidos, que as folhas haviam sumido, que a terra endurecera e trovões e nuvens cinza-escuro enchiam o céu de um apocalipse campestre. Uma visão que durara um segundo apenas, e logo o quintal se tornara quente e atrativo.

Fiquei algum tempo pensativo, se ainda estava com sono e havia dormido enquanto vestia a camisa. Olhara para minha mãe, e seu rosto continuava impassível, fitando-me e com a mão estendida para uma caminhada.

Peguei em sua mão e a segui até a frente da casa. Abrimos a porta enquanto ela estava com uma felicidade inabitual, quase saltitando em suas sandálias marcadas pelos passos pesados. Abri a porta e o frescor da manhã banhou meu rosto.

Vi a estrada, as árvores e uma ponta do jardim mais à direita em minha visão periférica, mas não foquei em nada disso. Logo o braço flácido de minha mãe agarrara no meu e me empurrava, levando-me direto para a estrada. Em menos de trinta segundos, estávamos de pé, em direção ao sul, olhando para a estrada e o vale que serpenteava até quase o infinito. Começamos a andar.

- No fim, caminhamos. - Disse ela, sorrindo.

- O que quer dizer com isso? - Indaguei.

Ela fitara uma raposa que atravessava a estrada. Estranhamente, não houve medo ou terror de nenhuma das partes. Após o animal passar e sumir nos arbustos, continuamos nossa caminhada.

- É uma história longa. No começo, não havia vida. Talvez os jornais e programas que passam na televisão estejam certos de que havia algo antes de nós, mas que não havia nada de nós antes de tudo isso que vemos. Somos efêmeros como os tomates que morreram ontem à noite.

- Nunca vi a senhora falando a palavra “efêmero”.

Ela sorrira.

- Aprendi enquanto lia um de seus livros surrados. Leio romances também, as vezes contos e novelas, às vezes poemas. Gosto de ler. Mas é questão não é essa. Quando o mundo se criou, tudo caminhava para a direção que levava ao lugar que estamos agora.

- Quando digo que a vida é uma caminhada, talvez não me refira necessariamente a alguém refletindo sobre sua vida. Coisas inanimadas também caminham, atuam e seguem seu destino, nos auxiliam a chegar nos lugares.

- Tive muitas coisas depois que nasci. Tive meus pais, tive você. Tive todas as experiências e bens materiais que me levavam até aqui. E tudo se ramificou, as coisas também tinham suas próprias histórias, seguiam seu próprio caminho.... Mas a direção talvez fosse a mesma. Sempre.

Passamos por um grande vale, repleto de gramíneas, e ela pegara uma flor e colocara em sua orelha.

- Me apeguei a coisas, sofri por pessoas, e no fim, não houve fim. Continuo caminhando, a vida muda de contexto. O universo mudou de um inferno para um céu, de um congelado para um vale... Nós também mudaremos... Aceitei isso hoje de manhã.

- Do que você está falando?

Ela ficou em silêncio, mas seguimos. Tive a impressão de ter-se passado várias horas. Comecei a reconhecer o caminho para nossa casa.

- Continue caminhando, meu filho... - Ela se colocara em minha frente e pegara em ambas as minhas mãos. Falou o que nunca esqueci.

- A vida é uma eterna hégira... O destino final é a contínua redenção, onde sua alma repousa e sua mente sabe que está tudo bem. Não desista.

Vi uma lágrima correndo por seus olhos, e logo ela soltou minhas mãos e saíra. Reconheci minha casa ao meu lado, o sítio onde fora criado. Fiquei pensativo um tempo, pensando se ainda estava sonhando.

Me virei para entrar, minha mãe já havia sumido nos ares. Ao chegar perto do portão, olhei para a esquerda e reconheci uma pessoa caída próxima aos canteiros de tomates. Era minha mãe.

Ao chegar perto dela, não foi difícil reconhecer que seu coração expirara e sua boca findava-se num sorriso.

Tenho a impressão mais forte de estar vivendo num sonho, desde esse dia. Já quis muito que isso acabasse, mas acabei aceitando tudo que ouvi. Se até a realidade é efêmera, não terei medo de que meu atual sonho se transfigure num novo mundo, uma outra vida.

Devo caminhar até quando puder.

Brenno Lima
Enviado por Brenno Lima em 22/10/2023
Reeditado em 13/06/2024
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