Sentimentos Aburguesados
- Qual seu nome, meu rapaz?
- Josias, senhor.
- Está há quanto tempo na rua?
- Três anos, senhor?
- Como você parou aqui?
- Crack, senhor.
O policial anotava sem pestanejar, sem olhar para Josias, até que perguntou:
- Só crack? Tem certeza que o único motivo de estar na rua é o crack.
- Tenho sim, senhor. O crack era uma forma de fugir dos problemas, até o momento que crack e problemas eram uma coisa só. Não sei exatamente descrever como tudo se sucedeu, na verdade.
- Você fala bem, rapaz. Podia estar melhor. Nesse saco, tem o quê?
- Nada não, senhor. Apenas bobagens. São das minhas crianças, na verdade.
- Hum, brinquedinhos? Você está na rua, não tem nada, mas tem filhos. Quantos? E esposa, também tem?
- Esposa e um filho, senhor. Eu tenho fé em dEUS que um dia as coisas vão melhorar. Mas eu tenho o mais importante que é família.
O policial levou a mão ao rosto enquanto segurava a caneta e prancheta com a outra mão, fechou os olhos, botando o polegar sobre uma das pálpebras e o indicador sobre outras, cansado de ouvir tanta fé e otimismo de quem está na rua.
- Rapaz, você não tem absolutamente nada. Não existe nenhum pensamento, nenhum, que não pode ser escusado de uma análise contextual, e desde o fortalecimento dos Estados Nacionais e rompimento da lógica do Antigo Regime, essa narrativa de afeto familiar existe. Muito por conta das necessidades materiais individuais, ter família é um conceito de sobrevivência animalesco, uma necessidade que se faz necessária para sobrevivência que também atinge outros primatas. Você muito provavelmente diz isso porque nunca teve um contraponto a essa forma de pensamento e acredita nisso mais por conveniência. Não nego que pode haver afeto verdadeiro de sua parte, mas dizer que isso é o mais importante está errado e você está se inebriando com esse sentimento para não se sentir tão mal na fase da vida em que você está. Isso você que tem é um sentimento aburguesado, uma forma de pensar que surgiu quando a burguesia passou a ser um grupo mais hegemônico e dá ao contexto familiar uma certa sofisticação retórica, mas que não é nada. Você não tem nada, absolutamente nada.
- Senhor, eu sei disso, mas é só a primeira vez que alguém tem coragem de vociferar isso.
Nota do escritor: salvo em textos técnicos, trabalhos, processos seletivos ou outras ocasiões em que não tenho completa autonomia sobre a formatação que redijo, eu escrevo esta palavra estilizada dessa maneira "dEUS". Ainda conservo o hábito de escrever dessa maneira "deus", mas me reservo o direito de não fazer referência reverenciosa, e quiçá um protesto, a uma entidade religiosa a partir da maneira "Deus" dessas por duas razões: primeiro que não sei se existe e, segundo, se existe, essa entidade precisa de uma excelente escusa para justificar tamanho horror e sofrimento nesta realidade.