Uma explicação para que não pensem que minha mãe é desalmada ou ainda que eu esteja triste.


Hoje minha mãe resolveu dar uma limpeza geral na casa. Jogar o lixo fora. Armada de vassoura, balde, 
espanador,bombril,desinfetantes,detergente, nada deixou, da porta da sala até a porta da cozinha que remotamente se parecesse com sujeira. Ao passar pelo quarto que durante muito tempo fora meu, quarto junto com pontas de lápis, bolinhas de papel, farelos de biscoito e uma perna seca de barata, ela me varreu, colocando-me com a pazinha (azul) na lata de lixo (azul). Estou falando da cor (da pazinha e da lata) não porque isso simbolize alguma coisa, mas apenas porque azul é a minha cor predileta. Tenho que ser franca. Isso é uma tentativa de desculpar minha mãe, por ter me varrido assim, como se eu fosse lixo. È que, como eu sempre me visto de azul, provavelmente ela nem percebeu, nem viu que me varria e me jogava fora. Este pensamento me leva também a abandonar o assunto central de que trato aqui para pensar em você que está lendo isto, porque, ou eu nada conheço da raça humana ou você deve estar aí pensando em como minha mãe é desalmada e em quanto eu devo estar sofrendo. Não que eu me importe muito com o que pensem a meu respeito (só um pouquinho) , mas mãe é mãe e eu não quero que ninguém pense mal da minha. Por isto, juro, fazendo o sinal da cruz, que nada disso que você está pensando é verdadeiro: nem minha mãe é desalmada nem eu estou sofrendo, porque tudo não passou de um plano bem elaborado por mim para me livrar dela. Esse plano começou há algum tempo quando eu descobri que nós duas juntas nunca poderíamos fazer nada de bom uma para a outra, embora tudo o que fizéssemos, uma para a outra, tivesse esta desculpa. A primeira idéia que tive foi simplesmente ir embora como faz a décima milionésia parte das pessoas que estão aborrecidas com alguma coisa. Meu plano era ir embora levando tudo que era meu,o que podia não ser muito, mas era tudo e era meu: roupas, livros, poucos discos, bijuterias, documentos,coisas assim. Depois de pensar por anos e anos no assunto, achei que de maneira nenhuma o problema se veria resolvido dessa maneira porque logo rádio/jornal/televisão noticiariam meu desaparecimento e eu acabaria tendo que voltar. Mesmo se não voltasse, para ficar assim o tempo todo existindo, eu sabia que acabaria escrevendo ou vindo visitá –la ou telefonando a cobrar, acabaríamos passando juntas os feriados e os fins de semana e eu iria acabar me sentido culpada por tê-la abandonado, filha desnaturada, e, além disso, como não gosto de fazer juízo errado de mim mesma e sei que sou muito influenciável, eu mesmo iria chegar a conclusão de que era uma vagabunda, que é o que ela certamente iria pensar de mim.  Descartada essa hipótese pensei simplesmente em morrer, mas isso não me entusiasmou muito, porque eu sou uma pessoa prática e quando compro passagem quero saber para onde vou, nada disso de embarcar assim ao léu. Tenho que fazer essa viagem um dia, sem saber para onde vou, garanto que vou dar trabalho.vai ser preciso muita força para que me levem,não vou fácil não. Levei anos pensando. Outras soluções passaram por minha cabeça , mas descartei-as logo, pensando na santa religião em que eu fora educada. Depois de muito escarafunchar , tive a idéia que chegou ao seu clímax hoje: coloquei-a logo em prática  e digo que não levou muito tempo, só lastimo agora os anos que perdi antes de achá-la. Resolvi então deexistir. Não pense que é erro ortográfico, a palavra é essa mesma. Não sei se existe ou se acabei criando um neologismo, é que não achei outra palavra que exprimisse exatamente oque eu me propunha. Não simplesmente deixar de existir, mas, mais que isso, apagar todos os vestígios de minha existência. Nunca ter sido. Comecei desaparecendo com tudo o que era meu dentro de casa, gradativamente, um objeto por dia, para que ela, se acostumando com a ausência, não desse falta. Noite após noite eu ia destruindo tudo. Ora era um livro que eu queimava, uma roupa, um quadro que eu destruía. Colocava outros nos lugares, iguaizinhos, sempre tive esse cuidado, pois  não sendo meus, não tinham nada de mim. Depois passei a destruir as provas oficiais de que eu era eu. Isso foi um pouco difícil porque tive que ir como um ladrão, na calada da noite, destruir tudo aquilo que mostrava que eu tinha existido: Escolas, cartórios, lojas,escritórios. Durante muitos anos a polícia andou tonta à procura do causador de tanta inquietação, tamanha confusão, mas graças a Deus e a mim, que sou esperta, não me descobriu. Tenho de agradecer também o fato de ninguém ter morrido. Ninguém não, só o vigia bêbado de um escritório onde trabalhei, mas aquilo não era gente, os jornais mesmo disseram. Passei depois a me destruir: deixei de falar, para que ela se esquecessse do som de minha voz. Passei a comer depois que ela saía da mesa. Quando ela passou a sair e imediatamente a tirar a mesa jogando fora os restos de comida, deixei também de comer. Não mais perambulava pela casa nem ia ao banheiro, afinal de contas para que, se eu não comia nem bebia? Mas, como ainda continuava visível, resolvi me esconder debaixo da cama. Fiquei lá algum tempo até que hoje minha mãe resolveu fazer uma limpeza geral e me varreu, mas isto já é sabido. Deixei de existir. Ninguém sente a minha falta e eu posso ficar tranqüila, sem escrúpulos, ninguém pode me considerar uma desalmada filha, já que afinal de contas ninguém nem mesmo sabe que eu fui filha de alguém. Acho que agora dá para compreender porque eu digo que minha mãe mãe não foi uma mulher desalmada ao fazer de mim, lixo. E que não estou triste. Como poderia estar, se agora eu estou livre?