Maria, Srta Desmemoriada
Maria estava atrasada, como ocorre quase sempre, e sem o relógio no pulso se sentia ainda mais perdida. Precisava ficar atenta a relógios dispostos pelo caminho ou a algum pulso condescendente visível. Não podia, aliás, não teria o direito em pensar em adiar novamente a visita à sua tão distante tia, afinal sempre que pensava em ir visitá-la algo inesperado acontecia, seja uma chuva de raios, um sol impiedosamente quente ou um frio de bater queixo incessantemente. Mas dessa vez, não seria a falta de um relógio no pulso que a faria desistir. Afinal, qual a importância de se ter conhecimento das horas? Bem, pensando por outro, se nunca mais carregar um relógio, acabaria com a sensação de estar sempre atrasada. Assim o problema seria eliminado. Isso seria um ótimo truque para não fazer mais parte da lista das pessoas conhecidas com Senhoras Atrasildas.
Todavia, a mente começou a vaguear, precisava lembrar-se do endereço da sua tão distante tia, pois, mal se recordava de quando foi a sua casa. Ademais, sua memória era outra questão, pensava, por vezes, que estava com sua capacidade comprometida, uma vez que, quando se lembrava de uma coisa esquecia-se de outra, e assim seguia, em cadeia de sucessões de esquecimentos. Será que realmente estou ficando desmemoriada?
Isso a fez recordar de quando estava a bordo do voo entre Florianópolis e Rio de Janeiro, no qual havia uma criança aos pratos, esperneando, enquanto sua mãe a segura pela cintura, gritando que a soltasse, pois dizia ser um tigre, e por isso não podia ficar sentada na poltrona. Sua mãe o advertia informando ser apenas uma criança, e ele insistia dizendo haver se esquecido de ser criança hoje. E por fim, cansada das tentativas, ela apelou, o informou que não era necessário parar de fingir, e que o daria uma barra inteira de chocolate, que assim como coelhos amam cenouras, tigres se comportam e amam chocolates. A partir disso, não se ouviu mais um pio da criança, ou melhor, os rugidos do pequeno. Persuasão e proposta irrecusável = a eficiência.
Mas enfim, lá estava Maria, no terminal de ônibus, esperava pela linha 3378, e, curiosamente, ela percebeu ser exatamente o número que constava na caneca velha de alumínio usado pelo Senhor Morador da Esquina 5, na verdade, era seu utensílio de trabalho, afinal ele sacolejava suas costas largas, normalmente cobertas por casacos longos, e logo em seguida a sua apresentação batia a caneca no chão, feito prisioneiros em celas passando objetos pelas grades, e esperava o pagamento por sua apresentação. Não era algo extraordinário, mas era realmente cativante.
A lucidez voltando a permear seu cérebro enquanto visualiza o farol do ônibus se aproximando, feito argolas sorridentes, parando em sua frente feito um corvo, que simboliza a morte, o mau presságio, e, ao mesmo tempo, pode simbolizar a sabedoria e a esperança. As doses associadas à intenção podem levar a um ou a outro. Ao abrir a porta parecia um monstro querendo engolir, sem convites, apenas imposição. O chão estava imundo, como se tivesse acabado de participar de um concurso de lama, o caminho até poltrona, a fez sentir-se num pântano. E não adiantava desistir, pois já tinha adiado essa visita por meses, melhor, por anos, precisava encarar. Mal deu tempo de sentar à poltrona e o ônibus arrancou, a fazendo bater a cabeça na poltrona da frente. Diante a situação, tentou relaxar, mas, neste instante, algo explode em sua mente: esqueceu a chaleira com água no fogão ligado. Ah, Srta Desmemoriada!