Procura-se filósofo
Os amigos conversavam sobre trabalho, profissões e assuntos afins. A palavra estava com o mais falante deles: "É assim que as coisas se passam, pois já aconteceu comigo mais de uma vez. Se num grupo de pessoas, digamos numa festa, um indivíduo disser que é filósofo, certamente vai despertar tão pouco interesse que despertaria se dissesse ser, por exemplo, afiador de facas ou vendedor de picolés, talvez até menos. Isso, se não o acharem arrogante ou patético."
É verdade. Sobre isso, em um de seus melhores contos, "A boa gente da roça", a norte-americana Flannery O'Connor escreveu: "A garota concluíra o doutorado em filosofia e o fato deixava a mãe totalmente confusa. A pessoa podia dizer 'minha filha é enfermeira', ou 'minha filha é professora primária', ou até mesmo 'minha filha é engenheira mecânica.' Mas quem podia dizer 'minha filha é filósofa?' Aquilo era coisa que tinha acabado na época dos gregos e romanos."
Como muita gente, ele desconhecia a escritora e seu conto e prosseguia explicando para o amigo, quase como se o tivesse lido: "Então, esse sujeito não seria tratado como um indesejado, mas certamente seria olhado com certa estranheza, como alguém não pertencente ao grupo. E de modo algum tentariam fazê-lo sentir-se à vontade contando anedotas sobre filósofos, mesmo porque se elas existem, são raras.” No que ele tinha plena razão. São raríssimas as anedotas sobre filósofos.
São tão raras que na remota universidade de Eidelberg alguns pesquisadores também andaram preocupados com a quase ausência delas. E patentearam a única anedota conhecida (não muito ainda) do meio filosófico, criada em laboratório. Um dos cientistas da equipe tinha sugerido que o sobrenome Nietzsche, do filósofo Friedrich Wilhelm, assemelhava-se bastante a um espirro. Ao espirro de uma garota franzina que tivesse ido a um sebo empoeirado em busca de um livro de filosofia idem. Então, ao cabo de vários meses de estudo, os especialistas criaram um pequeno diálogo, que era a própria anedota, plena de humor germânico:
- Moço, onde ficam os livros de filosofia? Nietzsche?
- Ali, na quinta estante. Saúde!
Sim, era só isso mesmo, breve como um espirro. E de volta ao amigo falante: “Existem centenas de anedotas sobre médicos, psiquiatras, advogados, mas eu confesso nunca ter ouvido qualquer anedota sobre filósofos. Nem mesmo durante o curso de Filosofia. Você se lembra de alguma?”
“Não, de modo algum! Eu nunca havia pensado nisso antes... Mas deve existir alguma anedota sim, e certamente é daquelas em que o sujeito ri por dentro, jamais gargalha, como costuma acontecer nos filmes de Woody Allen. Somente consigo pensar numa anedota sobre filósofos nesse estilo: algum lampejo de inteligência, mas nada ou muito pouco de riso... Alguma coisa do tipo: Penso, logo desisto. Descarto.”
Estivesse vivo, Descartes certamente não ficaria surpreso com a quantidade de máximas e mínimas originadas de seu máximo pensamento. Uma das mais recentes: “Clico, logo existo.” De autoria desconhecida, mas perfeitamente adequada ao pensamento dos novos filósofos informais do mundo digital.
“É, pode ser...”
“Também pode ser que, devido ao que o filósofo faz ter pouco ou nada a ver com a resolução de problemas práticos, por isso mesmo a sociedade não lhe dispensa o mesmo tratamento dado aos demais profissionais... Mas você foi à luta e conseguiu seu lugar sob a luz dos refletores; você é um felizardo. Parabéns!” Ele estava entusiasmado com o sucesso do amigo, quer dizer, com o trabalho que ele tinha conseguido como consultor de filosofia para um novo programa de conhecida emissora de televisão.
“Na verdade, não colocaram nenhum anúncio assim: ‘Procura-se filósofo’, que isso não existe mesmo. Fui indicado por um conhecido, que também está no mesmo projeto. Buscavam gente nova, gostaram do meu currículo, fui bem na entrevista, sorte minha..."
“De qualquer maneira é um trabalho ligado à filosofia, e isso é bom; você pode se tornar conhecido de pessoas influentes do meio. Até pode ser contratado novamente, para outros projetos depois, quem sabe? E vai enriquecer seu currículo... Fora o salário que está recebendo que também é importante, claro.”
“Sem dúvida. E esperamos que as pessoas, especialmente os críticos, entendam que o que vamos colocar no ar não é, digamos, um simpósio filosófico, mas informação com certo embasamento intelectual. Pois filosofar, pensar a condição humana, não é um privilégio exclusivo de um Sócrates, Kierkegaard ou Sartre...”
“Claro, claro... Vou esperar pelo programa de estreia com curiosidade! Bem que eu gostaria de estar fazendo alguma coisa parecida...” E olhando o relógio: “Rapaz, a conversa está boa, mas tenho de ir. Mais tarde vou dar uma boa olhada nesses anúncios todos. E mais uma vez, obrigado pelo caderno de empregos.”
“Amigo, fique com os demais cadernos também. Leve todos consigo, pois tenho algum trabalho para redigir ainda nesta noite, não vou poder ler nada mesmo.” O amigo aceitou e então ele chamou o garçom. Pagou a conta sozinho, apesar dos protestos do outro. Este, que ajeitava os cadernos do jornal, então falou:
“Sabe, eu estava pensando... Só pensando.”
“Pensando no quê?”
“Naquilo que você falou lá atrás, sobre ‘Procura-se filósofo’, um anúncio que ninguém jamais viu em jornal algum.”
“Sei, mas o que é que tem?”
“Eu estava imaginando aqui com os seus jornais... Imaginando que um dia alguém inventasse de colocar um anúncio assim e fornecesse um número de telefone para contato. E que um cidadão formado em Filosofia visse o anúncio, ficasse interessado e ligasse para o telefone fornecido.”
“Como assim?”
“Preste atenção.”
- Alô. Pois não.
- Olá. É daí que estão procurando filósofo?
- Sim, daqui mesmo. O senhor está interessado?
- Estou, é claro. Foi por isso que liguei.
- Ótimo. Leu o anúncio e ligou, não?
- Sim. E o que vocês estão exigindo dos candidatos?
- Absolutamente nada.
- Nada? O senhor pode ser mais claro?
- Claríssimo: não se trata de um emprego.
- Não?
- Não. Trata-se apenas de completar uma anedota.
- Completar uma anedota? O senhor está brincando comigo!
- Certamente que estou! Já viu alguém anunciar emprego para filósofo pelos jornais? Só pode ser piada. O senhor telefonou
e agora a anedota está completa. Muito obrigado!
- Ah, é? Quer saber de uma coisa, então? Vá tomar no Orkut! De nada.
E ele riu, quase gargalhou. Mas o amigo não ria, apenas sorria. Geralmente os filósofos são pessoas sérias ou tristes, que não riem jamais (gargalhar então, somente de escárnio). É o peso de mais de dois mil anos de filosofia que carregam sobre os ombros. Ombros não, cabeça.
“Então, que tal minha anedota?”
“Até que não é de todo má. Talvez seja mesmo uma anedota de filósofo; parece não ter graça alguma.” Além de não ter graça alguma ele ficou com vontade de dizer que gente ligada em redes sociais, já que o amigo havia mencionado o antigo Orkut, punha anúncios na internet, não nos jornais. Mas não querendo parecer crítico demais, nada mais falou. Apenas se despediu dele:
“Valeu, amigo! Eu tenho de ir, que já está tarde. A gente se vê qualquer hora. Um abraço, Ortega!”
“Um abraço, Gasset!” Retribuiu o outro.
Ortega e Gasset não se abraçaram, logicamente. Que somente se abraçam as pessoas que dizem ‘venha de lá um abraço’. As que dizem ‘um abraço’ dificilmente se abraçam de fato, especialmente se estiverem conversando no telefone ou pelo WhatsApp.
E sem abraço real algum, Ortega e Gasset foram cuidar da vida que existia além das anedotas idiotas dos programas de televisão e assemelhados. Porque, como diz o povo em sua tumultuada sabedoria, cobra que não anda não engole sapo. Nem lagarto.
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Nota:
"A gente boa da roça", in Flannery O'Connor - É Difícil Encontrar Um Homem Bom, São Paulo, Arx, 2003, página 203.