Crime perfeito

Meu vizinho, o delegado Nordmark, às vezes conversava comigo sobre sua profissão, seu trabalho na polícia. De minha parte, entre outras coisas, eu lhe falava dos livros que havia lido: às vezes ele me pedia uma recomendação de leitura, mas eu nunca soube que ele tivesse lido algum autor de minha indicação, nem mesmo do Truman Capote o ótimo A Sangue Frio. Ele sabia que eu havia lido muitos livros policiais mas que nunca conseguia descobrir o culpado ou culpados antes de chegar ao final de uma dessas histórias, especialmente as escritas por Agatha Christie. E me falou que, curiosamente, isso também ocorria com ele, então tudo bem.

Numa ocasião conversamos sobre outro tópico bastante interessante: o crime perfeito. Que, segundo ele, era mais fácil de ocorrer na ficção, na imaginação, do que na realidade porque o escritor pode controlar todas as variáveis enquanto escreve, mas na vida real as coisas funcionam de modo diferente. Não que eu apreciasse tanto assim literatura policial, mas se não existe o crime perfeito, como queria o delegado, também não existe o leitor perfeito, não é mesmo? Embora exista o leitor apaixonado [pelos livros], conforme o título de um dos livros do escritor Ruy Castro. E os leitores apaixonados por livros são inúmeros mundo afora, felizmente.

Bem, para Leonardo Nordmark, que esse era o nome completo do meu vizinho delegado, planejar o crime perfeito seria uma coisa tão inútil quanto alguém tentar mostrar uma bela vitrine de ótica para um cego. Gostei dessa frase, mas tenho lá minhas dúvidas se ela é realmente de sua autoria assim como a próxima, ao me contar que conhecera um criminoso que havia levado tanto tempo a planejar um crime perfeito que acabou morrendo antes de poder executá-lo. Pois é...

Embora não existisse o crime perfeito havia o Crime Ferpeito, que não era um crime nem uma solução para os bandidos, mas um filme, uma comédia que ele havia visto fazia algum tempo cinematográfico já. Na dúvida, já que o delegado gostava de uma bebida e podia estar inventando coisas ou torcendo a língua, trocando as bolas, depois fui pesquisar na internet e constatei que havia sim um filme espanhol com aquele título, Crimen Ferpecto, uma produção de 2004, conforme ele dissera.

Ainda que Nordmark acreditasse que o crime perfeito talvez existisse apenas em tese ou na ficção, mesmo assim ele achava possível, isso sim, se falar em crime quase perfeito. E o crime quase perfeito só era possível em função da competência de uns, os bandidos – cada vez mais audaciosos, inteligentes e usando tecnologia de ponta –, e da incompetência de outros, as vítimas – desprotegidas, descuidadas, exibicionistas –, e os policiais – despreparados, desmotivados, inábeis, e algumas vezes até mesmo cúmplice dos marginais.

Além do que havia outro fator ou complicador a ser considerado, a sorte. Quase sempre sorte de uns, os bandidos, e azar dos outros, as vítimas e os policiais, mas não que isso fosse uma regra, claro. De todo modo, quando a sorte dos primeiros se juntava a sua elevada competência, aí então se chegava bem próximo da perfeição criminosa, sem dúvida! Mesmo entusiasmado com suas ideias, no entanto o delegado Nordmark achava que essa tese também não era perfeita. Embora fosse quase perfeita...

Depois disso, para afastar um tanto o negativismo das coisas, ele me falou que havia algo que estava achando perfeito no momento em que ouvia um disco, quer dizer, um CD. Amorosa, gravado pela cantora Rosa Passos havia alguns anos já. Desde a primeira audição teve a certeza de que Amorosa ainda seria considerado um clássico moderno. Gravação responsável por abrir ainda mais as portas internacionais para a cantora brasileira. O mesmo que tinha acontecido com o sensacional álbum Amoroso, do próprio João Gilberto, na década de 1970, não?

Sim. Mas quem é que havia dito que “uma obra que passado algum tempo não se torna prima, corre o risco de se tornar obsoleta (até mesmo esquisita), porém, toda criação que se revela de qualidade numa primeira visão (ou audição, leitura etc.), acaba se tornando um clássico moderno ou instantâneo”? O autor do formidável ensaio histórico e literário sobre a modernidade, Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar, Marsahll Berman, um intelectual?

Não, ele mesmo, Leonardo Nordmark, um policial. E sua ideia fazia sentido ou era mais uma daquelas especulações sobre o tempo e o artista que de vez em quando lhe passavam pela cabeça? É... Precisava refletir melhor sobre isso outro dia: ele mesmo não tinha certeza plena de que sua afirmação abarcasse algum significado profundo e não encerrasse nenhuma contradição. Mas...

Mas tinha plena certeza de uma coisa: apreciava demais o disco de Rosa Passos, que frequentemente ouvia em casa ou no carro; não se cansava de ouvi-lo nunca. Disse que compraria uma cópia para me presentear: somente precisava lembrar-se disso da próxima vez que fosse ao supermercado adquirir munição ou bebida. E como ele já estava pra lá da Escócia de tanto beber uísque, achei melhor nem dizer que não precisava se dar a esse trabalho, que hoje em dia quase ninguém mais ouve ou compra CDs: nem os bandidos, as vítimas, os policiais e nem eu mesmo.

Afinal de contas, além de não ser um leitor perfeito, também nunca fui um ouvinte perfeito. Ninguém é perfeito, mas talvez algo ou alguém seja ferpeito. Quem sabe?