"O Velho e o Pé de Feijão"
Chovia. Um vento frio e úmido furtivo insistia em atravessar pelas frestas da porta e da janela.
Uma torneira cismava em pingar. O velho não conseguia dormir. Sua artrose doía como nunca. Fantasmas rondavam a cama.
Sentia-se mijado. Preguiça de se levantar para ir ao banheiro. O pinto parece que encolheu com o tempo e o saco espichou. Triste. O pijama cheirava a remédio. Os pés frios incomodavam. A noite não tinha fim. Mirou-se no espelho. O cabelo ralo cai na pia. Pêlos floresciam no ouvido. Afinal para que serve pêlo no ouvido nesta idade?
Será que ninguém apareceria para lhe fazer companhia? Dar uma colher de xarope. A tosse sempre era pior à noite. O rádio de pilha também tossia. Tinha que ser chacoalhado para funcionar. Trânsito complicado. Enchentes, mortes, corrupção no governo, criança abandonada no lixo, futebol e horóscopo.
Hipertensão, colesterol, próstata, artrose. O médico mandou comer mato e caminhar. As calçadas esburacadas eram um desafio. Tinha medo de cair e passar vexame. Quebrar a bacia e ficar condenado. Não, melhor não caminhar, ficar quietinho.
Levantou-se amarfanhado. Tinha que tomar banho e fazer a barba. Tarefa difícil, dolorosa e dava medo de escorregar, deixar o sabonete cair, ter que se abaixar, de se cortar. A campainha tocou. Será que tocou? Não ouvia direito. Quem poderia ser?
Os filhos estão longe, cheios de problemas com famílias, filhos, empregos, doenças e falta de dinheiro. Então deve ser alguém pedindo doações. Deixa tocar.
Lembrou-se que tinha algo muito importante a fazer. Mas não conseguia saber o que era. Aquilo ficou batendo na cabeça. Se não lembrar pode dar algum problema, ou enguiço.
Pôs água nas plantas, água para o café. Ficou matutando. O telefone tocou. O senhor foi premiado, ganhou um título de sócio patrimonial do Clube de Campo Paraíso Verde, totalmente quitado. É só pagar a taxa de manutenção mensal. Tem lago de pesca, tem quadra de tênis, cinco piscinas e fica pertinho, só 300 km.
Resolveu ligar a TV. Rodou por todos os canais. Venda de panelas, de almas, de aparelhos de ginástica, remédios para emagrecer, receitas e rezas. Começou a cochilar.
Acordou assustado, quase se afogando com a saliva. Pensou que havia perdido o horário. Mas não conseguia de jeito nenhum se lembrar o que de tão importante tinha para fazer.
O velho sentou-se no quintal e ficou prostrado olhando para o chão. Estava exausto, não conseguia se lembrar de quase mais nada. Tratou de observar um exército de formigas. Imaginar qual seria a rotina destas incansáveis trabalhadoras.
De repente lembrou-se da infância. Flashes de momentos perdidos. Havia uma experiência de escola que o encantava. Colocava-se um grão de feijão em um algodão umedecido e, como por milagre, assistia-se o crescimento do legume.
O velho, então, se animou a repetir a experiência. Deu um sorriso maroto e esqueceu-se definitivamente que aquele dia era o seu aniversário.