FOLHAS DE CORDEL

Saldanha

O sol ‘gema corada' se deita moroso pela caatinga rala (...) Já não se ouve o canto macio da patativa. Árvores envergadas – irmãs umas das outras – caminham de encontro ao riacho seco. Um dia fora bonito e ‘deu o que falar' devido suas águas torrentes ‘prontas para o banho ou a banha' de quem ali mergulhava. Da porteira, tinha-se o carreiro, cada vez mais estreito e mau carpido rumo ao sítio: um casebre escondidinho meio a copa das laranjeiras. A pequena chaminé, acesa 5 da manhã para coada do café, denuncia que ali tinha gente acordada, na timidez do bonito amanhecer.

Uns poucos arbustos tomavam a margem da estrada erma, donde os jumentos queriam e não conseguiam ‘correr a galope'. O ‘pé de frutas', de ‘encher os olhos e a boca [do provador] exibia suave coloração tingida de ‘sombreado marrom'. Lavouras, todas essas ‘derrotadas’, choram a perda por aquilo que não ganharam, em momentos de doce promessa. Seguem, de pouco, a faixa indecisa do horizonte. O que restou, jogado aqui e ali, as avezinhas deselegantes ‘comeram', de sobejo, para elas um farto banquete. E os cactos? Tinha, sim. Um amontoado de espinhos ‘afiados que só’ conflitando espaço com as florzinhas roxas da própria planta carnuda. Parecia sorrir, naquele dia enrolado, por onde raríssimos passarinhos volteavam em torno do açude.

O céu claro, segue-nos calado, pelas linhas solitárias do grande sertão. Lá, na vereda, aos poucos ‘escondidinha' por entre as dunas de areia, moro eu ou eu quero morar. Não escondo esse meu desejo íntimo, ainda latente no riso e na lembrança. Tiveras tempo para me encantar! Oh solo bendito! Oh terra do nunca. Se vestiu de verde, algumas vezes, e nesses vezes quis enamorarme. Eu não aceitei, de pronto. Mas, dengoso que sou, descobri as suas reais intenções: mostrar bons motivos para a escrita deste texto. A paisagem, depois disso, se abre em valsa e cores indefinidas, na mais completa poesia, afivelando o gosto pela leitura. O deserto, no meu entender, acolhe e recolhe boas ideias desamarradas do mau agouro. Cada filho seu, em algum momento, pode regressar, seja por agrado ou empatia, procurando inteirar-se do quadro real.

Os capuchos da mata cipó silenciam os últimos gritos de despedida. Realçam, em pensamento, aquilo que possas lembrar, por mero capricho. Era uma vez pastaria... Carcaças de boi, largadas no chão, denunciam a passagem da antigo gado, agora branco, esquecido e definhado pela seca. Pobres vítimas da vertigem natural. A luz solar serve-lhes de consolo, sob a morada tumular, varrida todos os dias, pelo vento uivante dos fins de tarde. Dali em diante, temos a pálida do noção do quanto a estiagem foi má por aquelas bandas. A falta de água, seguida da falta de comida, redesenhou o retrato da paragem ‘de uma só cor'. -"Está tudo acabado", dirimiu, em choro, o agricultor generoso de olhos quase fechados meio àquele momento incerto. É quando limpa, com um lenço vermelho quadriculado, a face melosa, devido o calor estonteante de março.

Um dia, a chuva mansa, desvirginou aquela terra, posta em brotos e ramos. Deu vida a quem estava para nascer. Trouxe esperança em troca de alegria. Alegria sentida pelos camponeses. Recriou animais sedentos de alimentos e cuidados ao esteio. Refez o que era de todos e para todos: o ambiente e seus derivados. De um lado, a casa caiada de branco, do outro, o estábulo, todo esse de madeira rústica. Cheiro de crina, capim e erva-cidreira. Bastava não apenas um sopro do vento para soltarem o odor agridoce típico de fazendinha. Esta, abandonada, mostrava-se quieta, ao correr dos anos, sem nada o que lhe oferecer, sendo desfeita a cada 365 dias, ‘vendo quem não a ver. Ainda na parede, a pele de carneiro, o vidro de querosene vazio, o chapéu sem aba. Aquilo que não deu para levar na mudança ficou ali, de resto, avolumando a varanda suja.

Uma tigela branca, posta no espelho, deixa transparecer que o senhor vivia ali tinha barba. Vaidade ou costume aparava esta com a navalha [sumiu àquelas alturas] para melhor apresentar-se. Não que homem barbudo seja de mau jeito mas, o capricho fala por si e pelos outros.

A toalha de rosto, porém, ali não estava. Cela com uma boa carícia a barbicha depois de feita. Os outros cômodos, fechados [trancas e escoras] limitava-se a guardar o que não tinha mais valor, pertenças dos antigos proprietários. O que por exemplo? Enxadas, foices, molduras de retratos, santos faltando o braço, aros, resto de feno, castiçais, lâmpadas queimadas, tábuas, pregos, entre outros.. O cheiro, porém, não era dos melhores: mofo. As baratas roeram tudo, cantinho por cantinho, demarcando o seu terreno como único e irretocável. Um par de botas de couro, de bom e fino estofo, aparece na ponta do alpendre. Sugere-se ter sido do antigo dono, um posseiro desses que mau sabem ler e escrever, entregues ao labor constante da vida sertaneja . O ar de tristeza, em rebeldia, conduzia a cena ‘nunca antes esquecida’. A poeira, a todo sorte, empastava de pó tudo o que via pela frente, formando pequenos a médios redemoinhos, ‘nada ferozes', arranhando a copa das laranjeiras. Um ruído leve, fanhoso. Quem sabe Guimarães Rosa, de modo vertical, teria algo para falar ou esconder, nessa hora?! Nunca se sabe, meu caro leitor.

Ah, sobre o barulho do pomar... Para quem ouve, de bom grado, é CANÇÃO DA TERRA, dedilhada com amor-eterno. Ali, pois, estava a natureza em lavor. O sertão tem disso sim, surpresas em forma de milagres, bênçãos sem nome. A região, quase que despovoada [a boa gente foi embora] ilude, mesmo, aquele teiú, de cabeça descoberta, ‘espiando' a passagem de alguém no canto escuro da capoeira. Virou, pois, personagem célebre nas histórias verdadeiras e não verdadeiras do semiárido GLEBA PERDIDA NO TEMPO. Por que? Resiste à seca, impiedosa, cravando a sua presença como ‘guardador do tempo’, tempo para ele insuperável. Se pudesse falar... Cantaria ou prosearia? Talvez quisesse, apenas, prestar atenção nas FOLHAS DE CORDEL.

Thiago Valeriano Braga

Thi Braga
Enviado por Thi Braga em 06/08/2021
Reeditado em 06/08/2021
Código do texto: T7314832
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