TIO HERMÍNIO NÃO QUER MORRER

Fui chamado para ir correndo à enorme casa do tio Hermínio. Meu coração começou a disparar. Sabia que ele estava para morrer, mas essa era uma verdade que eu achei que podia iludir simplesmente não pensando no assunto. Era o meu protesto contra a sua morte iminente. Fiz as coisas de sempre e consegui esquecer momentaneamente a possibilidade de estarmos à véspera de um velório na família.

Não havia casa maior que a do tio Hermínio na cidade. Por muitos anos fora o centro de peregrinações de políticos, advogados, professores, artistas, intelectuais. Todos levando oferendas em forma de bajulação. Tio Hermínio era o grande orgulho da pequena cidade. Escritor conhecido em todo o Estado, com doze livros publicados. Através de seus escritos a cidade ganhou lugar de destaque no mapa. Ele passou a ser visto como uma espécie de rei local, o homem mais inteligente e que representava o que a cidade tinha de melhor.

Mas agora estava ali, vencido, prostrado numa cama. Não havia no mundo qualquer remédio capaz de curá-lo. A morte já dava por feita aquela ceifa. Tio Hermínio era um defunto que ainda respirava. Ele poderia, se quisesse, arrepender de pecados e, em complexos exercícios de imaginação, assistir ao tal filme da sua vida.

Sempre fui o sobrinho favorito, o que lia em primeira mão algumas das suas histórias. Ajudei a criar personagens, contando minhas travessuras de menino. Ele foi menino há tempo demais para se lembrar dos detalhes que fazem uma criança ser verossímil para um conto ou romance. Eu era sua fonte inspiradora. E isso fazia de mim alguém importante. Eu era um Peter Pan com outros pseudônimos dentro do seu mundo da imaginação.

A notícia que recebi da tia Ana é que ele queria se despedir de mim. Ela me conduziu ao quarto do moribundo. Ele deitado, me olhou de um jeito cansado. Confesso que me senti num filme de terror, bem no início quando a gente ainda não sabe exatamente de quem ter medo e quando. Sentei-me à beira da cama. Tio Hermínio estava parecendo um mórbido boneco de cera. Dava-me certo asco viver aquele momento. Ali estava eu, um menino, prestes a se atracar a um fantasma e ser possuído por ele para sempre. Estava diante de um evento que eu sabia que jamais esqueceria não importa quantos anos passassem.

Com muita dificuldade e dor tio Hermínio tocou o meu braço. Fez algum sinal para que eu deitasse sobre o peito dele. Era uma tortura que parecia durar mais tempo do que realmente durava. Meu coração batia mais do que o de costume. Ele disse algumas palavras, com a boca seca e com a voz bem pequena. Era algum tipo de lição de vida, algum ensinamento derradeiro. Balancei a cabeça concordando, com os olhos marejados e uma aflição que eu não sabia definir.

Tia Ana entrou, parou na porta e fez um sinal com a mão. Tio Hermínio precisava descansar. Abençoei aquele gesto libertador. Saí da cama, deixando o meu tio pronto para morrer. Ele tinha de certo modo a minha benção. Se dependesse apenas de mim ele poderia adentrar o portão do paraíso e cear com os deuses ainda naquela noite.

Saí do quarto, mas ainda fiquei na casa. Minha mãe estava na sala conversando com tia Ana, que fez sinal para que eu me sentasse e tomasse café. Enquanto tomava café e comia bolo, percebi que elas estavam sérias e discutiam algumas burocracias a respeito do velório.

- Já tem a lista das pessoas da capital que temos que convidar?

- Creio que sim. Vou pedir à Valéria para repassar comigo a lista. Não podemos deixar ninguém de fora. Ele tinha muitos amigos lá, o pessoal dos jornais, o secretário de Cultura do Estado...

Eu fazia de conta que não estava ouvindo nada. Achava tudo aquilo muito confuso. Talvez fosse isso que os adultos faziam normalmente. Mesmo assim, eu estava cada vez mais desconfortável com todo aquele ritual. A morte se apresentou para mim de forma muito torturante e cheia de tarefas.

- Será que ele passa desta noite?

- O Dr. Feitosa disse que dificilmente passa. Se acontecer durante a noite, vou precisar de você aqui amanhã cedo para me ajudar nos convites. Temos que fazer isso com antecedência para dar tempo ao pessoal da capital. É uma gente muito ocupada. Hermínio ficaria muito feliz em ser prestigiado.

Terminei o bolo. Inventei alguma desculpa para minha mãe, algo como tarefa da escola, e saí daquela casa rapidamente. Antes, porém, minha tia me agradeceu e disse que possivelmente amanhã estaríamos velando o corpo do meu tio, que era para eu ser forte. Disse que eu tinha que vestir uma roupa muito elegante.

- Ele ficará muito contente se você estiver bonito no velório.

Balancei a cabeça concordando e fui para casa. Tudo aquilo parecia demais para mim. Até então a morte era apenas aquela coisa bem triste e que deixava todo mundo chorando. Não imaginei que tivesse tanto protocolo a ser seguido. A morte passou a ser para mim, a partir daquele momento, uma coisa chata, além de tudo que já era: triste, irremediável, misteriosa, etc.

Não consegui dormir naquela noite. Esperava o telefone tocar trazendo a notícia que o tio Hermínio tinha descansado. O telefone não tocou. Minha mãe, logo cedo foi conferir se o aparelho estava estragado. Não estava. Ligou para a casa do tio Hermínio e falou com a tia Ana.

- Alô, tudo bem por aí? Alguma novidade?

- Nenhuma novidade. Ele continua lutando.

Fiquei com a sensação que o tio Hermínio havia ultrapassado algum limite e estava frustrando o plano de toda a família ao amanhecer vivo. Tia Ana contou à minha mãe que ele teve uma crise, mas conseguiu suportar. Depois dormiu profundamente. Ela conferiu o hálito dele para ver se estava respirando. Estava. Mesmo assim ela conta que permaneceu em vigília a noite quase toda.

Resolvi que não iria à escola naquela manhã porque meu tio poderia morrer a qualquer hora e eu não queria estar longe. Não sei que tipo de função eu teria, mas julguei que poderia ser útil. Minha mãe e a tia Ana fizeram algumas ligações. Deixaram algumas pessoas importantes de sobreaviso. O dia custou a passar com aquela espera estranha. Não fui jogar bola com os amigos da rua. Fiquei em casa vendo televisão e olhando o telefone. Tocou uma vez. Suspirei, tremi. Era a tia Ana. Ficou mais de dez minutos com a minha mãe. Não era a notícia aguardada. Minha mãe resumiu para mim.

- Sua tia disse que a casa hoje estava cheia. Muita gente foi se despedir do seu tio, coitado.

Passaram-se alguns dias nessa agonia toda. Tio Hermínio morre, não morre. A partir do quinto dia não houve mais visitas na casa. A cena do meu tio moribundo na cama não comovia mais ninguém. Era uma espécie de espetáculo sem o grande final, que começava a entediar os envolvidos. O pessoal da funerária ligava todos os dias perguntando à tia Ana se tinha alguma novidade, se ela havia se esquecido de comunicar a eles. Tia Ana estava constrangida com a situação. Já não sabia mais onde enfiar a cara quando alguém perguntava. Três pessoas do governo ligaram para saber sobre o velório. Não tinha velório, ela explicava. Do outro lado da linha, a pessoa disfarçava e dizia que era algo bom, que ele estava vencendo e coisa assim. Tia Ana consentia, talvez mentindo.

Tio Hermínio não melhorava, apenas não conseguia morrer. Já estava desenganado pelos médicos. O testamento estava pronto e revisado. Já tinha se despedido de todo mundo. Estava em paz com Deus e tinha pedido todos os perdões possíveis. Estava pronto para morrer, mas era algo que por algum motivo não acontecia.

Eu cansei também de toda aquela maratona mortuária. Não vigiava mais o telefone. Ia às aulas como todo menino e à tarde brincava na rua, sem sentimento de culpa. Não sabia se tio Hermínio era vivo ou morto. Com aquela idade e todo o conhecimento que tinha na época eu entendia aquilo como um tipo de limbo, palavra que vim conhecer muito tempo depois.

O povo da cidade que estava rezando pela saúde do tio Hermínio foi aos poucos se ocupando de outras causas. A rádio local que noticiava boletins sobre a saúde do escritor famoso voltou a tocar só músicas em sua programação matutina. O repórter do principal jornal da capital, escalado para cobrir os últimos momentos do ilustre morador já havia fechado sua conta no hotel e voltado aos seus afazeres. Tia Ana continuava sua tarefa de velar o marido vivo, cuidando de suas necessidades biológicas.

Alguns meses depois do dia em que foi condenado a morrer em casa, rodeado pela família e amigos, tio Hermínio não resiste e, por fim, morre. Tia Ana suspira aliviada e tenta chorar. Não consegue. Quando minha mãe abre a porta do quarto para me dar a notícia, não tive reação acalorada.

- Tá bom, mãe. Coitado do tio Hermínio!

Eu disse isso de forma bem automática. Parecia-me ser a frase certa de dizer nessas horas. Perguntei sobre o roteiro do funeral. Minha mãe me explicou que teria apenas uma missa fúnebre na igrejinha do bairro e logo depois já seria o enterro, algo simples e íntimo. Eu disse algo como “é o melhor”. Abri de novo a revista em quadrinhos que lia e voltei a me interessar pelos personagens da história.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 20/07/2021
Reeditado em 11/08/2023
Código do texto: T7303604
Classificação de conteúdo: seguro