" O Menino e a Solidão"
Os dias eram curtos. As noites longas. Nunca chegava a hora certa. A expectativa era de remédio amargo, missa comprida e visitas dominicais ao cemitério e aos parentes velhos que achavam que o menino estava anêmico, magro, doente e feio.
A vida não apresentava cores nem sorvetes. Um copo de tubaína no domingo. Em dias especiais, abacaxi molhado no vinho.
As ruas eram cinza. A poeira tomava conta da respiração. A vista embaçava. A roupa doada não servia. Sempre torta e desajeitada, quando nos outros era vistosa, estava na moda. Ficava apertada demais ou quase sempre muito grande, naquele corpo franzino. Pele e osso.
Quando a noite caia, assombrava a perspectiva do dia seguinte. A culpa, o medo e as almas penadas tomavam conta da escuridão infinita. Suores, dores pelo corpo e a morte rondando.
E se os deuses estariam o acusando de fracasso, e o levariam a loucura, ao infortúnio de não ser o que o destino o reservara?
O menino encontra uma amiga no breu da noite pavorosa. Cremilda estava perambulando sorrateira pelo canto do quarto. Procurava insetos. A exuberante lagartixa tornou-se uma das principais confidentes do menino. Ouvia, pacientemente seus lamentos, choros e reclamações, dos dias de tortura e desencontro.
Assim ele seguiu por vários séculos, através do seu mundo particular e fantástico.
Tinha o Bonifácio, o violão. A Dona Brígida, a geladeira. Marialva, a lavadora de roupas. Vivi, a violeta. Dom Porcírius, o banheiro. Ovídio, o telefone. Lelé, a cama. E assim por diante. Havia uma família unida e compreensiva nos momentos de agruras e desespero.
Foi assim que ele encontrou seu conforto. Seus interlocutores eram solidários e gostavam dele. Não reclamavam se ele estava magro demais. Se ele bebia muito. Se ele comia pouco. Se ele chorava desiludido, tinha o colo de seus fiéis amigos para consolar.
Em uma noite assombrada. Quando recebia visitas de terríveis criaturas que o acusavam de toda a mazela do mundo. Que, fatalmente, seria alvo de alguma injustiça. Que teria sido contaminado por um vírus ainda desconhecido da ciência. Que era vítima de erros médicos. Que a polícia estava atrás dele por conta de um crime feito por um homônimo. Que seria estuprado na cadeia. Que o governo havia tomado sua casa, seus bens. Enfim, uma noite comum como todas que ele vinha tendo a vida toda. Ele deixa a Lelé e vai conversar com Dom Porcírius. Lá ele encontra uma criatura desconhecida, sem nome, nem alma. Desfigurada, estranha ao seu convívio. Esquecida pelo tempo, pela vida, pelo mundo: o espelho.